Os Livros, Esses Objetos Perigosos

A história dos livros é cercada de acontecimentos conflituosos. A exemplo, a invenção da Imprensa no século XV, quando a impressão da Bíblia se tornou um dos símbolos da Reforma protestante, o livro mostrou-se como um dos elementos mais suscetíveis de engendrarem as revoluções. Em contrapartida, a destruição de livros foi uma das ações de cerceamento mais realizadas através dos tempos, na tentativa de sufocar o discurso dissonante. A imagem da Biblioteca Nacional de Sarajevo bombardeada pelos sérvios em 1992 talvez seja a mais impressionante figura de destruição de algo tão humano. É como se um imenso organismo estivesse morto diante de nós. Uma imagem tétrica.  

Há também as fogueiras de livros e, antes de existirem as bombas, elas são uma prática de destruição que remonta à antiguidade. Usadas como ações coercitivas, de igual forma serviram para calar os discursos e denunciar pessoas que possuíam obras proibidas. Em Atos 19:19, cristãos protagonizaram essa ação em Éfeso, voluntariamente, numa clara exposição de intolerância em relação à ciência. Prenúncio da Inquisição? Tanto religiosos como ateus viram nas fogueiras de livros uma ferramenta de controle de ideário, além de elemento renovador da cultura. Tempos depois, as mais famigeradas queimas de livros ocorreram a partir de 1933, durante o nazismo, uma perseguição aguerrida aos intelectuais judeus e opositores do regime. Hitler e seus seguidores promoveram essas queimas por toda a Alemanha, numa tentativa de “limpar” a literatura.  

Autores como Freud, Marx, e Thomas Mann tiveram obras jogadas ao fogo, e houve certa indiferença por parte de setores da sociedade e de alguns países diante disso. Mas aqui evocamos o prognóstico do poeta Heinrich Heine, que parece ser o mais adequado a essa época: “onde se queimam livros, acabam por se queimar pessoas.”

Por outro lado, o controle político também se deu através dos livros. Todos sabemos da história que envolve O livro vermelho de Mao-Tsé Tung, e sua leitura impositiva em prol da Revolução Cultural chinesa. Outrossim, depois de alguns Concílios da Igreja, ficamos, no Ocidente, sob a influência de Platão e da Bíblia.

No entanto, devemos, antes de tudo, falar de como os livros enriquecem a nossa vida. Instrumentos de transformação pessoal, eles são aquilo que mais nos representam: não consigo passar um único dia sem me lembrar de um personagem, fictício ou real, que eu tenha conhecido por intermédio deles. É uma questão não só de memória, mas também identificação e de construção identitária. Eles nos revelam a nós mesmos, e mostram algumas de nossas facetas que por vezes não vislumbramos. Quem não ousa confidenciar que se tornou cúmplice e ao mesmo tempo juiz de Raskolnikóv em Crime e Castigo? Ou não sofreu com Gregor Samsa em sua angustiosa condição na Metamorfose? Quem não riu e chorou com o Dom Quixote? São miríades de personagens e histórias que nos atravessam por intermédio dos livros, milhões de vidas que somos possibilitados de viver, inventar em nossa própria realidade, tornar o seu discurso em algo que nos inunda (para mim, sempre que preciso, vou ao século XVI beber das lições de Montaigne, que me iluminam). Devo, por isso, concordar com Borges, que afirmou que o Paraíso seria uma grande biblioteca. E as histórias contadas a nós, através das tradições, não foram contadas principalmente pelo fato de estarem registradas nos livros? Curiosamente, os relatos dos povos ágrafos me dão a impressão de pessoas como livros vivos, como em Farenheit 451.

E ainda a necessidade, cada vez mais premente em tempos como o nosso, em falar deles como objetos revolucionários, porque são instrumentos de transformação da mais radical, de um movimento sobretudo íntimo. Os livros são o antídoto para a nossa ignorância para com o que está além de nós. Permitem-nos ver o mundo. Lemos o mundo. Atacar o livro é atacar a própria liberdade, a manifestação de inventividade por excelência do espírito humano. A ação de censura do prefeito do Rio na última Bienal mostra que essa atitude está mais presente do que nunca. Estamos no século XXI e ainda há inquisidores que, legitimados por um discurso de intolerância que tomou o poder, agem em prol de uma suposta higienização, como nos outros tempos. 

A censura é o meio de se tentar tolher o que há de mais nobre na natureza humana: a sua relação com o outro, com a outra história, através da própria história.

É por isso que, em contrapartida, os grandes movimentos renovadores de ideias, que alavancaram a humanidade, sempre começaram com o livro. Não se pode imaginar o Iluminismo sem a Encyclopédie. Os livros, como instrumentos de mediação, são o ponto central da construção de uma cultura para os elos humanitários. E onde esses elos se rompem, rompem-se a beleza, o diálogo, o respeito e a alteridade. Queimam-se pessoas.


Paulo Roberto de Almeida é livreiro. 


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