Era noite. Na sala de estar, familiares e conhecidos velavam o corpo de Patrocínia. Na sala ao lado, uma mulher, insone e recolhida, passava a noite sentada no chão, sobre o assoalho de madeira daquela casa. Ali permaneceu muitas horas completamente reclusa, inconsolável e transtornada. Joaquina era o seu nome, a neta da falecida, com seus trinta anos de idade. Abalada emocionalmente pela morte da avó, seu distúrbio psiquiátrico teria se agravado profundamente a partir daquele dia, tornando-a cada vez mais dependente de cuidados familiares.
Logo após a missa de sétimo dia de Patrocínia, Joaquina foi conduzida ao tratamento em uma clínica em Matias Barbosa (MG). Pela primeira vez, ela era internada em uma clínica psiquiátrica. A instituição era particular. O tempo foi passando e, com ele, os parcos recursos de uma família pobre. Maria, mãe de Joaquina, despendeu todas as economias na expectativa de que a filha recobrasse o mínimo de consciência necessária a uma vida autônoma. Mas a cura não vinha, e o dinheiro acabava.
Joaquina deixa a clínica e retorna ao convívio familiar. Dessa vez, no entanto, a casa do irmão, Sebastião, no Morro Alto, era o seu destino. A mãe também fizera daquela nova casa seu abrigo, após o marido, conhecido como Caboclo, com sua vida errante e quixotesca, abandoná-la. A adaptação a um ambiente doméstico repleto de crianças seria o grande problema. Eram oito os filhos do irmão, seus sobrinhos, que a tinham como criança. Com eles Joaquina se irritava e travava guerras de nervos diárias. Diante de seu comportamento sobressaltado e atormentado, as brigas e agressões às crianças se tornariam cada vez mais corriqueiras, o que também impacientou o irmão. Tudo isso o teria motivado a tomar uma drástica decisão: interná-la em um hospital psiquiátrico público. O Colônia, de Barbacena, teria sido o primeiro a lhe passar pela cabeça. E assim foi decidido. A mãe, Maria, embora apreensiva com o destino da filha, talvez não fizesse objeção à decisão do filho naquele momento.
Já tradicionalmente conhecida como a capital brasileira da loucura, Barbacena, desde o início do século XX, já abrigava o maior manicômio do Brasil. A escolha da cidade para sediar a instituição teria sido um “presente de grego”, um prêmio de consolação recebido após o município perder para Belo Horizonte a disputa ao posto de capital de Minas. Para lá eram enviados milhares de pacientes de diversas regiões do país.
Sebastião acordou cedo para embarcar com a irmã na estação ferroviária mais próxima, em Matias Barbosa. Comprou um pacote de biscoito para distraí-la enquanto o trem cortava o mar de morros das Minas Gerais. Sem se dar conta do que lhe ocorria, Joaquina seguia uma viagem tranquila ao lado do irmão.
A última parada foi na estação Bias Fortes. A essa altura, o trem, já bastante cheio, preparava-se para chegar ao destino final. De repente, a locomotiva desacelerou. Acabava de passar pelos fundos do Hospital Colônia. Muitos, como era o caso de Joaquina, talvez nem soubessem o porquê do desembarque naquele local. Outros tinham plena consciência da situação que enfrentavam. E sofriam a revolta de serem despachados, à força, em um local obscuro.
A recorrente cena da chegada do trem apinhado de “pacientes” acabou se eternizando nas memórias literárias de Guimarães Rosa. Ao observá-la algumas vezes, o escritor deu origem à expressão “trem de doido”, incorporada definitivamente ao vocabulário do mineiro. Foi no “trem de doido” que Joaquina chegou ao local onde viveria as mais terríveis condições de abandono e maus tratos. Na época, os tratamentos psiquiátricos ainda passavam longe do processo de humanização. Os procedimentos se resumiam à camisa de força, às agressivas injeções de “entorta” e aos choques elétricos.
No interior do manicômio, pacientes nus, sujos, com fome, expostos à pneumonia e à tuberculose, urinavam e defecavam no chão. Suas camas eram os montes de capim espalhados pelos pátios. A superlotação, os banhos coletivos, a promiscuidade, a água suja de fezes, o convívio com os ratos, o mau cheiro, o frio, o calor, a sede e a fome eram a realidade que Joaquina teria que enfrentar a partir daquele dia.
Desassistidos pelo poder público e desprovidos de acompanhamento e visita dos familiares, muitos indivíduos que passavam por aquela experiência não conseguiam sobreviver para contar sua história. Afinal, pelas condições a que eram submetidos, o quadro de saúde daquelas pessoas só piorava, levando-as a um caminho sem volta, marcado pela exclusão e perda das referências sociais, afetivas, etc. Tinham suas roupas arrancadas, suas personalidades desfiguradas. Muitos perdiam até o próprio nome, sendo rebatizadas lá dentro.
Sebastião acabara de entregar a irmã nas mãos dos funcionários da instituição. Em instantes, Joaquina foi encaminhada para o local onde teve a sua roupa substituída pelo famoso “azulão”, o uniforme azul, de brim, que disponibilizavam aos “pacientes”. Dali em diante, esta seria sua única peça. Com suas histórias de vida simplesmente ignoradas, os “pacientes” eram vistos como massa amorfa, um amontoado de loucos. A exemplo do que acontecia com muitos outros internos, Joaquina desaprenderia a assinar o próprio nome. A digital passaria a identificá-la nos documentos.
Enquanto virava as costas para a porta por onde Joaquina entrava, Sebastião ouvia seus berros ecoando por entre os corredores dos pavilhões. Entrava no trem, mas os gritos não cessavam. A locomotiva ia contornando os fundos do Colônia, e a voz de desespero da irmã continuava martelando sua cabeça. Até que o silêncio veio abafado, o grito de desespero foi sufocado pela distância. E Sebastião seguiu a viagem de volta para Matias Barbosa sem declinar de sua intenção: prender a irmã entre as paredes cinzas daquele manicômio. É provável que, nesse momento, início da década de 1950, ele e os demais familiares ainda não tivessem a completa dimensão dos riscos que Joaquina corria. Mas os burburinhos circulavam. As estórias em “cousas miúdas” eram contadas. Com imprecisão e com ares de fabulação, mas eram contadas. O local, visivelmente triste e cinzento, apesar de não explicitar as atrocidades cometidas em seu interior, não possuía paredes completamente impermeáveis.
Mariana e Palmira, as tias de Joaquina – herdeiras da casa onde a mãe, Patrocínia, falecera – deram conta da internação da sobrinha meses depois, após Sebastião lhes fazer uma visita. Reagindo com perplexidade e preocupação, logo condenaram a atitude do sobrinho, que confessava não ter suportado as constantes brigas da irmã com suas crianças dentro de casa. Logo Mariana respondeu: “Se tivesse me avisado que faria isso, te autorizava a trazer ela pra cá, pra ficar junto comigo.”
Mesmo prometendo manter as tias atualizadas sobre a situação da irmã no manicômio, Sebastião não as tranquilizou. Em nenhum dia sequer, Mariana deixava de pensar no tratamento dispensado à sobrinha entre as quatro paredes daquele lugar obscuro. Quanto mais o tempo se passava, mais Mariana e Palmira se angustiavam. Comentários negativos e alarmistas sobre o manicômio chegavam pouco a pouco aos seus ouvidos. Vendedoras ambulantes de queijos e doces na região de Simão Pereira, as duas irmãs, entre uma conversa e outra com amigos e conhecidos da região, ouviam comentários assustadores sobre as condições inóspitas e desumanas que os “pacientes” enfrentavam lá dentro. Algumas pessoas se queixavam de que, após mandarem seus parentes para o Colônia, nunca mais tiveram notícias deles. Muitas dessas pessoas eram pobres e negras e habitavam os quilombos da região. Outras, recusando as explorações dos fazendeiros, eram tachadas de “malandras” e “vagabundas”. O envio ao Colônia era uma forma deliberada de repressão ou, quem sabe, de disciplinarização dos indivíduos considerados “desviantes” dos padrões sociais considerados “normais”. Tudo isso refletia, entre outras coisas, a realidade de segregação racial do Brasil no pós-abolição, que adotava a “limpeza social” como “solução” para os problemas do país.
Cansadas de se corroerem em preocupações, Mariana e Palmira ordenaram que Sebastião a retirasse do manicômio imediatamente. Estavam decididas a cuidar de Joaquina pelo resto de suas vidas, no sítio que a mãe lhes deixou de herança.
***
O ano era 1954. Joaquina “apiava” do trem em Matias Barbosa junto com o irmão, onde se encontraram com a mãe e “tia Quininha”. De lá marcharam alguns quilômetros a pé até o sítio da família. Livre, porém atormentada, Joaquina fez o percurso totalmente inquieta. As mãos, completamente vazias e despojadas de bens materiais, só se ocupavam com as pedras que encontrava pelo caminho. Não podia vê-las no chão que logo as atirava pelos ares.
Era pouco mais de meio-dia quando as três chegaram ao destino final. Nair tomava conta das parreiras de uva no quintal, quando ouviu o latido dos cachorros no terreiro. Caminhando em direção à casa, assustou-se com o vulto azul de uma mulher suja e descabelada que corria em direção à cozinha e logo se sentava, encolhida, ao lado da mesa. O vulto era o de Joaquina trajando o famoso “azulão”. Sujo, ensebado e malcheiroso, o pano se arrastava até seus pés caraquentos, envolvendo um corpo castigado pelas marcas do abandono e dos maus tratos. O mau cheiro, a pele encardida e o cabelo grande e grosso de sujeira evidenciavam o longo período em que ficara sem banho. Além disso, Joaquina ainda sofria com as sequelas de uma tuberculose que contraíra durante a internação.
Após um longo banho de bacia, as tias a vestiram com uma peça de roupa devidamente limpa e passada. Há tempos não sabia o que era isso. Havia desaprendido as mais simples e elementares noções de higiene pessoal. Entretanto, outro banho seria necessário para que sua pele perdesse o encardido e voltasse ao tom original. Mas aquele era o primeiro passo para recobrar a sua dignidade. Mariana lhe penteou o cabelo, prendendo-o com grampos. Esforço em vão. Estes logo foram violentamente arrancados e atirados ao chão. Aquela batalha não seria fácil.
A convivência com o comportamento arredio, atormentado e agressivo de Joaquina nesse período de adaptação trazia grandes dificuldades e desafios à rotina no sítio. A hora do banho era uma das mais difíceis. Àquela época, não havia banheiro dentro de casa. Os banhos aconteciam dentro do quarto, com baldes e bacias, objetos que Joaquina nem podia ver à sua frente – talvez por conta de algum trauma adquirido dentro do manicômio. Como um animal raivoso, mordia em quem estivesse ao seu lado. Certo dia, enquanto se banhava, saiu correndo de casa, nua, rumo ao pasto. Desconhecendo a direção que seguia, chegou à casa de sua outra tia, Aurora, que morava numa casa localizada na porção do sítio herdada da mãe, Patrocínia. Terna como o nome, Aurora abraçou-a, enrolou-a em um lençol e a levou para a casa que lhe serviria de morada, aos cuidados de Mariana e Palmira.
Respectivamente viúva e solteira, Mariana e Palmira se dedicavam bravamente à labuta diária na roça. Desde o falecimento de Patrocínia, a matriarca da casa, ambas imputaram à sua prima, Nair, com seus oito anos de idade, a responsabilidade pelos afazeres domésticos. Por ocasião do retorno de Joaquina à propriedade da família, Nair já tinha 11 anos de idade. A partir de então, abraçaria outra missão: conviver e cuidar diariamente com os gritos, xingamentos e agressões que Joaquina aprendera entre as paredes do Colônia.
Sem força física para conter a falta de limites da prima e se proteger contra as agressões físicas, a menina Nair precisava se trancar dentro da cozinha para conseguir preparar o almoço. Sem poder contar com auxílio médico e remédios controlados, Joaquina ainda permaneceria indomável por longos anos.
Mariana, porém, tinha a fé como recurso. Herdando da mãe portuguesa a devoção a Santo Antônio, buscava inúmeras vezes a tradicional água milagrosa do santo, na fonte situada ao lado da antiga Igreja de Santo Antônio, em Simão Pereira. Diariamente, aspergia um pouco do líquido sobre a cabeça da sobrinha, na esperança de que um milagre se concretizasse e a paz ali fizesse morada.
Como nada nesse mundo é imutável, com Joaquina não foi diferente. A passos muito lentos, Joaquina foi incorporando a rotina da casa e participando das atividades diárias. Os cuidados familiares a levaram a viver no seu tempo e no seu ritmo, tendo as suas especificidades respeitadas e sua dignidade restabelecida. Vez ou outra, ajudava em alguma atividade manual da casa, apesar de jamais ter voltado a assinar o próprio nome e a se comunicar fluentemente. O pouco que conseguia verbalizar eram os xingamentos aprendidos na experiência manicomial.
Antes de crescer, casar e se tornar mãe, Nair desenvolveu seu instinto maternal nos cuidados diários aplicados à prima e às tias. Quando estas faleceram, deixaram-lhe o sítio e Joaquina como herança e missão. Os filhos cresceriam ao lado de sua prima como uma criança idosa, de hábitos excêntricos. Não raramente, Joaquina era enredada pelas brincadeiras infantis, sendo-lhe atribuídos vários personagens. Um deles era o de aluna, que pegava a caneta para rabiscar em espiral ou em caóticas linhas o papel em branco posto à sua frente. Quando se irritava, desferia varadas na molecada, como se trocasse o papel de aluna pelo o de professora à moda antiga. Ou, quem sabe, lhe viessem à mente os fragmentos de memória dos tempos de outrora?
Em 1998, Joaquina encerrou sua missão no plano terreno. Seu pulmão, sequelado pela pneumonia contraída no Colônia, não resistiu a uma forte gripe. Lembro-me perfeitamente não apenas desse momento de sua partida, mas da minha infância ao seu lado, ensaiando o ofício de um “professor D. Quixote” e observando seu corpo sentado na extremidade do banco de madeira posicionado ao lado do fogão à lenha, enquanto comia, em seu prato esmaltado, apoiado sobre o colo, a refeição preparada por minha mãe. Lembro-me de seu cabelo liso, penteado inúmeras vezes com o pente que escondia em baixo do colchão, dos papéis de bala que colocava no chão como se estivesse a guardá-los com todo esmero e cuidado.
Nair é a minha mãe, a mulher que dela cuidou até os últimos dias de sua vida. Através dela, pude narrar essa história e incorporá-la ao livro que estou escrevendo sobre o sítio que, há 113 anos, vem servindo de cenário para as inúmeras histórias de uma família de origem camponesa.
A ideia de registrar essa narrativa me ocorreu a partir do primeiro contato com o livro Holocausto Brasileiro, de autoria de Daniela Arbex, por meio do qual pude cruzar as memórias evocadas por minha mãe com uma pesquisa documental. Durante a leitura do livro, pude estabelecer muitas correlações entre a trajetória de Joaquina e as outras histórias de vida narradas pela autora. Essa minha experiência é reveladora da importância da relação entre memória e história e da forma como a pesquisa redimensiona a nossa relação com o passado, lançando luz sobre acontecimentos e experiências por muito tempo silenciados. Não tenho dúvidas de que o livro de Arbex vem encorajando o descortinar de muitas histórias de vida, como a de Joaquina, ameaçadas de um sepultamento definitivo.
O primeiro passo para trazer à tona esse capítulo da nossa história foi dado pelo fotógrafo Luiz Alfredo e o repórter José Franco, quando, em 1961, publicaram emblemática matéria na revista O Cruzeiro, intitulada “Sucursal do inferno”, na qual publicizaram as mazelas do manicômio e a violação dos direitos humanos entre as suas paredes cinzentas. Metaforicamente, o Colônia pode ser considerado um “campo de concentração travestido de hospital”, como bem definiu Arbex. Naqueles pavilhões, segundo a autora, 60 mil “pacientes” perderam suas vidas, sendo que mais de 1800 cadáveres foram vendidos para faculdades de medicina do país, entre 1969 e 1980. Por muito pouco, Joaquina poderia ter se tornado um deles.
Sérgio Augusto Vicente
Doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade. Dedica-se a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG). Possui experiência em pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural em museus – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos e oficinas. Entre os anos 2022 e 2023, integrou a equipe curatorial de três grandes exposições que reabriram o Museu Mariano Procópio integralmente aos públicos, com novas abordagens historiográficas e narrativas expográficas. São elas: 1. Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação; 2. Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio; 3. Villa Ferreira Lage (ambientação da residência de uma família da elite senhorial brasileira do século XIX). Desde 2020, atua como escritor da revista Trama Bodoque: arte, cultura e criatividade (ISSN 2764-0639) e, a partir de 2022, também passou a atuar como membro do conselho editorial do referido periódico semanal.
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