A ONU celebrou data inédita convocando a sociedade para conscientização sobre a importância do trabalho de cuidado e de apoio e da sua contribuição fundamental para alcançar a igualdade de gênero e o desenvolvimento sustentável.
Presente em todas as etapas da vida, o cuidado é uma necessidade de todas as pessoas. Contudo, o desequilíbrio gerado pela atual organização social dos cuidados sobrecarrega especialmente as mulheres, sobretudo as mulheres negras e de menor renda.
No Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2022 (PNAD-C 2022), revelam que são gastas, em média, 17 horas semanais em afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas. No entanto, as mulheres gastam quase o dobro do tempo que os homens com essas tarefas não remuneradas.
Embora desempenhe papel central no desenvolvimento e na manutenção da sociedade e das economias, o cuidado, por muito tempo, foi pouco debatido e sua relevância é desconhecida por grande parte das pessoas ao redor do mundo.
Cuidar vai desde as ações básicas do cotidiano, como higiene pessoal e de ambientes, por exemplo, como também em atos de administração e planejamento de casas e famílias. O cuidado possibilita que as pessoas possam ter suas necessidades físicas e psicológicas atendidas. Esses trabalhos podem ser feitos de forma remunerada, quando é realizado por profissionais do cuidado, ou não remunerada, quando é realizado dentro dos domicílios pelas próprias famílias ou comunidade.
Buscando a conscientização sobre a importância do trabalho de cuidado e de apoio e da sua contribuição fundamental para alcançar a igualdade de gênero e o desenvolvimento sustentável das sociedades em seus três pilares – econômico, ambiental e social –, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou o dia 29 de outubro como o Dia Internacional de Cuidado e Apoio, através da resolução A/RES/77/317.
2023 é o primeiro ano em que a data é celebrada. A necessidade de reflexão e ação sobre o tema é reconhecida através dos dados que revelam não somente o quanto esta agenda abrange a toda a sociedade, mas também o desequilíbrio gerado pela atual organização social dos cuidados que sobrecarrega as famílias e, especialmente, as mulheres, sobretudo as mulheres negras e de menor renda.
“O reconhecimento pleno do trabalho de cuidado passa necessariamente pela corresponsabilidade de toda a nossa sociedade e, principalmente, por um enfoque de gênero. O cuidado com a casa, a família, as crianças e os idosos não pode continuar recaindo desproporcionalmente sobre as mulheres”, enfatiza a coordenadora residente da ONU no Brasil, Silvia Rucks.
As Nações Unidas no Brasil têm desempenhado um papel importante na valorização do trabalho de cuidado e de apoio por meio do trabalho das suas agências especializadas, fundos e programas, que desempenham ações que promovem a melhoria da condição de vida das pessoas que precisam de cuidados, como crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência, bem como das pessoas que provêm cuidados, especialmente as mulheres, que foram historicamente naturalizadas como as principais ou exclusivas responsáveis por esse trabalho.
Como já declarado pelo Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, “esse trabalho não remunerado ou mal remunerado não está reconhecido socialmente, o que reforça a exclusão e a discriminação que enfrentam as mulheres e meninas ao longo de suas vidas”.
“É verdade também que os legados do colonialismo e da escravização de pessoas africanas também geram impactos na desvalorização do trabalho de cuidado, que, por exemplo, no Brasil é predominantemente exercido por mulheres negras. É mais do que tempo de mudar essa realidade. Para reafirmar os direitos humanos de todas as mulheres, meninas e de todas as famílias e pessoas que necessitam e cuidados, devemos valorizar devidamente os trabalhos de cuidado e atenção. São atividades essenciais para o bem-estar social e para o desenvolvimento dos países. Devemos lembrar que os compromissos de direitos humanos fazem parte da espinha dorsal da realização da Agenda 2030. Para cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, inclusive reduzir desigualdades, promover o trabalho decente e o crescimento econômico, promover a igualdade de gênero, temos que transformar como o cuidado é percebido pelo mundo e dar a devida importância e apoio a essa atividade econômica, tão central para todas as pessoas em todos os lugares”, reforça o representante regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) para América do Sul, Jan Jarab.
“A atenção e o cuidado integral são as ações necessárias para a promoção do desenvolvimento integral em todas as fases da vida, desde a primeira infância. Não é possível pensar no desenvolvimento sustentável e numa sociedade justa e equânime sem levar em consideração os componentes inter-relacionados e indivisíveis de cuidado: boa saúde, nutrição adequada, segurança e proteção, cuidados responsáveis e oportunidades de aprendizado – tal qual preconiza o Modelo de Cuidado Integral desenvolvido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O cuidado integral é uma responsabilidade coletiva e faz parte das condições criadas por políticas públicas que permitem aos pais e cuidadores a proporcionar o desenvolvimento pleno para seus filhos”, afirma a oficial de desenvolvimento infantil do UNICEF no Brasil, Maíra Souza.
Trabalho invisível
Presente em todas as etapas da vida, o cuidado é uma necessidade de todas e todos. Para suprir parte dessa demanda em todo o mundo, 16,4 bilhões de horas são dedicadas, diariamente, ao trabalho de cuidado não remunerado, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
No Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2022 (PNAD-C 2022), revelam que são gastas, em média, 17 horas semanais aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas. No entanto, as mulheres gastam quase o dobro do tempo que os homens com essas tarefas não remuneradas.
“O trabalho de cuidado não remunerado segue subsidiando a economia global, permanece quase invisível, não reconhecido e não contabilizado nas contas nacionais e na elaboração de políticas. As implicações são diretas e desfavoráveis no posicionamento econômico e social das mulheres e das jovens”, afirma a representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) para o Brasil, Paraguai e Uruguai, Florbela Fernandes.
Precarização
Por outro lado, as ocupações ligadas ao trabalho de cuidado remunerado também atendem a diversas necessidades que regeneram o bem-estar físico e emocional das pessoas, bem como as demandas de educação, assistência, saúde e trabalho doméstico.
Segundo a OIT, mais de 11% dos postos de trabalho do mundo estão ligados ao trabalho de cuidado, sendo que as mulheres representam 65% desse percentual.
Um levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) com base nos dados da PNAD-C 2022, revela que, no Brasil, as mulheres são maioria nas vagas do trabalho de cuidado remunerado, sendo a maior parte no trabalho doméstico, representando 91% das pessoas trabalhadoras e 75% no conjunto que engloba profissões da área da educação, saúde e serviços sociais. A maioria delas, mulheres negras que acabam ostentando os maiores déficits de trabalho decente no país, representando a base da economia brasileira.
“As responsabilidades pessoais e familiares, incluindo o trabalho de cuidado não remunerado, afetam desproporcionalmente as mulheres. Essas atividades podem impedi-las não apenas de estarem empregadas, mas também de procurar um emprego ativamente ou de estarem disponíveis para trabalhar mediante curto aviso prévio. Esse é um dos motivos pelos quais uma política de cuidados não pode ser considerada um gasto, e sim, considerada, um investimento. Por um lado, gera empregos e, por outro, permite um aumento da participação feminina no mercado de trabalho, que tem um impacto positivo sobre a equidade e sobre o crescimento econômico”, explicou o diretor do Escritório da OIT para o Brasil, Vinícius Pinheiro.
Os números mostram justamente essas profissões que são majoritariamente ocupadas por mulheres são comumente as mais precarizadas, com baixa remuneração e, muitas vezes, sem proteção social.
Um dos maiores exemplos é o trabalho doméstico que no Brasil conta com apenas 24,7% das trabalhadoras com carteira assinada, mesmo que 56,4% delas estejam vinculadas como mensalistas. A média salarial dessas trabalhadoras nas duas modalidades de contratação ainda segue abaixo do atual salário-mínimo brasileiro, como aponta levantamento do DIEESE.
Crise dos cuidados
Nos últimos anos, uma série de crises chamou o olhar urgente para o setor de cuidados. O crescente envelhecimento da população, as mudanças climáticas e, especialmente, o contexto vivido na pandemia da COVID-19 deixou mais visível o aumento da demanda por cuidados, tornando ainda mais aparente os desafios das mulheres para acessar oportunidades em condição de igualdade e conquistar sua autonomia econômica, visto que são elas as grandes responsáveis por suprir essa demanda crescente por cuidados.
O Relatório Social Mundial 2023, produzido pelo Departamento para Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (Desa), aponta que o número de pessoas com 65 anos ou mais no mundo deve dobrar, passando de 761 milhões em 2021 para 1,6 bilhão em 2050 e alerta para a insuficiência dos investimentos públicos dos países para cobrir a procura crescente de cuidados de longa duração.
Em 2022, o relatório de Situação do clima na América Latina e no Caribe, da Organização Meteorológica Mundial (OMM) reportou que a Amazônia e nordeste do Brasil, são algumas das áreas que provavelmente verão secas constantes, afetando negativamente a saúde e o bem-estar da população.
O rastro de impacto deixado pela pandemia da COVID-19 nos mercados de trabalho afetou de maneira mais significativa o emprego feminino, resultando um retrocesso equivalente a mais de 18 anos nos níveis da taxa de participação econômica das mulheres, conforme aponta relatório conjunto da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e da OIT.
Tem se tornado cada vez mais visível que os atuais sistemas de cuidado e apoio não estão conseguindo apoiar sociedades e economias sustentáveis e resilientes, nem as pessoas trabalhadoras do cuidado.
“A pandemia da COVID-19 encerrou quaisquer dúvidas sobre a urgência do debate sobre gênero na América Latina e no Caribe. Não obstante terem sido o grupo social mais afetado pela crise, as mulheres são o pilar central sobre o qual se apoia a reprodução social na região. O pós-pandemia deixa claro que a transição para uma sociedade dos cuidados deve ser parte central de estratégias de desenvolvimento que busquem a ampliação da proteção social, a redução das desigualdades estruturais e o enfrentamento dos riscos postos pelas mudanças climáticas”, reforça o Diretor do Escritório da CEPAL no Brasil, Carlos Mussi.
Sistemas integrais de cuidados
Para superar a crise dos cuidados, é necessária uma nova organização social que promova a corresponsabilidade social e de gênero pelo cuidado, buscando reconhecer, redistribuir, reduzir, recompensar e representar o trabalho de cuidado sob uma perspectiva de direitos humanos, gênero, interseccional e intercultural.
Desenvolvimento sustentável e garantia de direitos
A resolução que proclama o dia 29 de outubro como Dia Internacional de Cuidado e Apoio, avança rumo a construção de sociedades inclusivas e sustentáveis, uma vez que reforça a necessidade de promover o bem-estar da sociedade e de todos os seus membros, em especial das crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência, além de enfatizar valor do trabalho de cuidado e reconhecer as pessoas trabalhadoras do cuidado não remunerado e remunerado como essenciais.
“Esse dia simboliza mais um passo em direção ao compromisso político e urgência global relacionados à visão de políticas e sistemas de cuidados e apoio como chave para o alcance do desenvolvimento sustentável e também é um convite para que toda a comunidade global se una nos esforços para uma mudança transformadora na organização social do cuidado e do apoio. O Dia Internacional do Cuidado e Apoio representa a culminação de anos de esforços das organizações feministas, das Nações Unidas e a academia em colocar a importância do trabalho de cuidado no centro do debate público e político e sua proclamação reforça a Aliança Global de Cuidados e ocorre quase um ano depois da realização da Conferência Regional da Mulher de 2022, onde foi acordado o Compromisso de Buenos Aires, documento mais importante a nível regional que posiciona em definitivo o cuidado na Agenda Regional de Gênero, em linha com as ações necessárias para reconstruir sociedades e economias após a COVID-19″, avalia a representante adjunta da ONU Mulheres Brasil, Ana Carolina Querino.
Artigo publicado no portal da ONU Brasil no dia 01/11/2023. Você pode encontrar mais artigos sobre esse e de diversos outros temas aqui.
A ONU (Organização das Nações Unidas) é uma organização internacional formada por países que se reuniram voluntariamente para trabalhar pela paz e o desenvolvimento mundiais.
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