Escrito em 1981 por Darcy Ribeiro, O Mulo estrutura-se como um livro de memórias num duplo sentido. Em um primeiro sentido, é um livro composto de memórias de seu autor, o expressivo sociólogo e importante político Darcy Ribeiro, cujas habilidades de escritor estão intimamente conjugadas às suas experiências de pesquisador e de representante no poder público brasileiro. Não é por outro motivo que Darcy dirá em seu livro Testemunho que O Mulo representa “mais uma ocasião destas, que não perco de testemunhar, o quanto somos um país enfermo de desigualdade”- 1 – aproximando-se bastante das intenções de outro de seus romances, Maíra, definido como “um romance da dor e do gozo de ser índio” em terras brasileiras. Diferentemente de Maíra,- 2 porém, O Mulo é um relato daquilo que o autor vivenciou sobretudo nas fazendas de Minas Gerais e Goiás de meados do século XX, em específico o conjunto de práticas e perspectivas de realidade organizadoras da forma de vida vigentes nos “modernos” latifúndios da região.
Enquanto é livro de memórias de Darcy, O Mulo é sobretudo um romance político e sociológico no qual retrata “o nosso povo roceiro, sobretudo os mais sofridos deles que são os negros, tal como os vi, sempre mais resignados que revoltados”. Em Testemunho, livro no qual Darcy conta-nos a sua trajetória e comenta suas obras, o autor dirá que guarda em si “recordações indeléveis das brutalidades que presenciei em fazendas de minha gente mineira e por todos estes brasis, contra vaqueiros e lavradores que não esboçavam a menor reação. Para eles, a doença de um touro é infinitamente mais relevante que qualquer peste que achaque a sua mulher e seus filhos. Essa alienação induzida de nossa gente, levada a crer que a ordem social é sagrada e corresponde à vontade de Deus, é que eu tomei como tema, mostrando negros e caboclos de uma humildade dolorosa diante de patrões que os brutalizavam das formas mais perversas”. Trata-se, imediatamente, de uma tentativa de descrição de uma sociedade organizada de forma rigidamente hierárquica, na qual o dono das terras é também o dono das gentes na medida mesma em que, como “dador”, distribui seus dons e desgraças segundo a apreciação do valor pessoal e funcional de seus subordinados e inimigos.
Embora nos fale de um passado recente, toda a narrativa do livro também nos levará a encarar aquilo que conforma as relações sociais em nossa cultura de herança colonial, a qual, como costume arraigado, pesa sobre os ombros e impõe o cabresto da ignorância e da perda de si por múltiplas vias. Seu ponto de fuga, assim, é o costume arraigado, capaz de produzir sujeitos e formas de vida: o núcleo de socialidade responsável por circunscrever os lugares e formas sociais de mando, de passividade, de cidadania e de indigência, diferentemente distribuídos entre grupos de mulheres e homens, índios, pretos e brancos; costume que se repete indefinidamente até adquirir a feição mitológica daquilo que, por não ser tematizado, se naturaliza e cristaliza. Na medida em que o livro não só explicita acontecimentos, mas os reconhece como processo e revela uma tendência afirmada como tal, se constitui como consciência crítica – como denúncia.
É a esta conclusão que nos leva uma análise da narrativa em seus elementos estéticos. Assim como é livro de memórias de Darcy, é também livro de memórias do seu personagem principal. O Mulo é um romance organizado como um diário, cujos conteúdos são as confissões e testamento do coronel Philogônio de Castro Maya: senhor de terras moribundo que aguarda sua morte e a absolvição dos seus pecados pela benção de um padre desconhecido, destinatário do seu diário/confissão. Certamente o fato do Mulo se confessar a um padre desconhecido é algo curioso, mas é o próprio Mulo que nos confessa os motivos do seu mutismo: por um lado, um mutismo desdobrado diretamente da sua bruteza e ignorância, derivadas da ausência de acesso um sistema educacional que atenda às populações mais pobres (Philogônio foi “outros” além de senhor de terras – sua origem é humildíssima); por outro lado, um mutismo consequente com a sua posição na rígida hierarquia social estruturante dos latifúndios, posição que exige o resguardo em relação aos perigos de ser demasiadamente humanizado por todos, o que ofereceria ao mundo a imagem de um homem mais frágil do que deveria sê-lo.
A questão que se põe, dada esta incompatibilidade entre a posição social de Philogônio e a sua atitude de confessor, é a do sentido desta estratégia de Darcy. Tal recurso, que contraria a imagem adequada deste ator social ao fazê-lo falar num tom pouco familiar a indivíduos em posição social semelhante, pode ser interpretado como a forma de explicitar uma intenção de tematizar o não tematizado na nossa cultura nacional, o mito que a funda no silêncio. Afinal, o Mulo confessará seus crimes, pensará seus erros e pretenderá passar a limpo o seu passado com Deus… Mas, ao mesmo tempo em que se põe em dia com aquele que julga ser o único acima de si, reconhece-se como criatura sob o mando deste mesmo Deus, seu senhor supremo que por isso mesmo coordena as suas ações. Tudo se passa, neste giro, como se o mando do Mulo se traduzisse em ordem divina, como se seus pecados pudessem ser atribuídos, em última instância, a Deus: “Esse mundo é variado, seu padre. Há o café e a borra. Há o caldo e o bagaço. Há quem manda e quem é mandado. Esse é o mundo da fábrica de Deus. Vou eu refazer? Quem sou eu? O meu é meu. O alheio, não sei: será ou não. Assim pensamos nós, mandantes, assim agimos.” – 3
O Mulo nos oferece, assim, o duplo de um “retrato psicológico da nossa classe dominante rústica” do sertão goiano e mineiro de meados do século XX, de mando duro e inflexível, assim como o perfil psicológico de uma mentalidade legatária direta da escravidão de índios e de pretos, que força o Brasil a manter-se sob a forma de um grande “engenho de gastar gente”.- 4
O grande interesse que a obra desperta, neste sentido, é o da investigação das nossas raízes coloniais, ocultadas sob as terras latifundiárias que ainda hoje conformam a nossa forma de viver e de fazer política. É pela explicitação das relações hierárquicas e apreciações de valor omitidas neste contexto que a obra faz desfilar diante de nós o mito social que, mesmo ocultado, ou talvez por isto mesmo, ainda opera como fundamento de um quadro amplo de relações de dominação e sujeição em nossa sociedade. Ao fazer falar o Mulo, Darcy nos põe a escutar a voz do mito estruturante de uma ordem social que não se reconhece como desigual por pressão de condições históricas ou mesmo por acidente, mas que se exerce como natural ao articular-se em inúmeras práticas de sujeição e dominação que a reiteram.
Notas
1 RIBEIRO, Darcy. Testemunho, Editora: Siciliano, 1990.
2 RIBEIRO, Darcy. Maíra, Editora: Brasiliense, 1976.
3 RIBEIRO, Darcy. O Mulo, Editora: Record, 1981.
4 RIBEIRO, Darcy. Testemunho, Editora: Siciliano, 1990.
Saulo Lance é formado filósofo e dialético por inclinação. Divide seu tempo entre a dedicação às sutilezas quase metafísicas do pensamento e a dura constatação de suas manifestações concretas – na esperança de um dia vê-las implodir.
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