Eu não tenho talento pra romances orgânicos em enquadramentos corriqueiros do cotidiano.
Explico.
No trem, o último da noite. Me sento sozinha num canto, distante de todo mundo.
Duas estações pra frente, entra um rapaz, senta de costas pra mim. O cheiro dele é incomum aos meus sentidos, perfume diferente. Me lembra do que eu chamo de “cheiro de água”, mas mais agradável. Olho de soslaio pelo reflexo no vidro. É um moço preto, não muito encorpado nem muito magro. O cabelo cacheado pende sobre o disfarce. Camisa branca, corrente prateada no pescoço, uma barba goatee.
Ele se senta e, poucos segundos depois, começa a cantar. Pra si, sem fazer alarde ou querer chamar a atenção. Não canta assim tão bem, mas o faz com uma honestidade de quem sente o que está cantando. Não conheço a música, mas me agrada.
Olho o reflexo da janela mais distante de mim, e a cena é esteticamente agradável. Simétrica. Ele, de costas pra mim. Me deixo divagar, pensando em como essa seria uma ótima cena pra começar um livro, ou um filme, ou um romance na vida real. E então, acontece. Acontece o que sempre acontece.
Poucas estações depois. Menos de 10 minutos. Ele continua cantando, passa para a segunda música. O som começa a me irritar. Que caralhos ele quer cantando em voz alta no meio do trem? E desafinado, ainda… Mas claramente convencido de que o faz extremamente bem. O cheiro, também, passa a sobrecarregar meus sentidos. Qual é a necessidade das pessoas de passar tanto perfume? Terrível, terrível. A magia da estética e da narrativa se quebra. Mal me aguento, só quero que ele saia logo do trem.
Mais duas estações, ele desce. Alívio. Internamente, rio de mim mesma, e constato o que disse na abertura: eu não tenho talento nenhum pra viver isso. Mas talvez, pra escrever, eu tenha algum.
Carol Cadinelli
é mulher de palavras (e, às vezes, de fotos). Mestranda em Estudos da Condição Humana na UFSCar. Gosta de comidas inusitadas, viagens grandes e pequenas, narrativas sáficas, tatuagem, exposições de arte e de São Paulo, onde divide um apartamento com Elis Regina e Erasmo Carlos. É conselheira editorial na Revista Trama e teacher, de/em Inglês mesmo.
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