Nasci em 1996, filha de mãe batista e pai pentecostal. Sou fruto de uma gravidez não planejada, mas de um amor consentido, e logo que minha mãe soube da notícia, fui amada, desejada e celebrada pela minha família e pela minha comunidade de fé. Fui alfabetizada e aprendi a ler arrastada pelo exemplo da minha avó, paraibana, empregada doméstica que lia a bíblia para mim todos os dias. Aos 8 anos aceitei Jesus publicamente, aos 11 me batizei, e desde então permaneço conduzida e guiada pela Ruah de Deus. Não me vejo em outro lugar que não seja na presença de quem me sustentou até aqui.
Dito isso, o que uma mulher nascida e criada no evangelho pensa sobre um projeto de lei que deseja equiparar o aborto a um homicídio em casos de estupro? Pode uma mulher evangélica não se sentir representada por uma bancada que professa sua fé?
O Projeto de Lei 1904/24, que visa restringir ainda mais o acesso ao aborto legal no país, ignora completamente a realidade brutal e dolorosa de tantas mulheres e crianças que enfrentam a violência sexual diariamente. A violência sexual é uma chaga profunda em nossa sociedade, e, lamentavelmente, também entre nós, evangélicos. Quantas vezes o estupro ocorre em lares cristãos, em famílias que professam a fé em Jesus? Quantas mulheres casadas, solteiras, viúvas, irmãs, filhas e netas sofrem abusos e são silenciadas? Enquanto isso, a pauta da criminalização do aborto é colocada como prioridade, desviando a atenção das verdadeiras questões de violência e abuso que deveriam ser enfrentadas com seriedade e segurança na sociedade civil, incluindo os púlpitos e gabinetes pastorais.
No mesmo mês que a bancada evangélica se engaja pelo PL 1904, pipocam as denúncias de pastores e líderes assediadores e pedófilos circulando em diversas denominações. Quais são os mecanismos que permitem que homens abusem deliberadamente de nós em ambientes institucionais religiosos? Por que crimes contra a mulher são tratados a nível espiritual e não legislativo, penal e judiciário? O mesmo Deus que justifica o pecador é justo e ouve o clamor das vítimas abandonadas, apagadas e esquecidas. Há de se ouvir o grito audível do corpo das meninas violadas e dar menos holofotes à histeria daqueles que imaginam diálogos de fetos, mas são incapazes de atentar para o pedido de socorro das milhares de mulheres e crianças violentadas a cada 8 minutos no nosso país.
Quem ora pelas mulheres que morrem em clínicas de aborto clandestinas? Quem sente a dor e se compadece do trauma das mães solo que foram violadas inúmeras vezes por seus parceiros? Quem se sensibiliza pelas mulheres que sofrem de estupros maritais, e que não são vistas como vítimas por estarem debaixo da bênção do matrimônio instituído por Deus? Se somos a favor da vida, devemos rever quais vidas estão imbricadas nessa equação. Silenciar o debate não nos fará mais santos ou menos pecadores, até porque a nossa fé pessoal não dita a vida de todos, mas a nossa conivência com esse PL 1904/24 afetará violentamente a vida das maiores vítimas de estupro do Brasil, meninas de 13 anos de idade, que majoritariamente são abusadas por familiares.
A bancada evangélica fala por quem? Será que ela contempla a oração das crianças que tiveram a sua infância roubada por abusadores? Quando a bancada evangélica se posiciona em defesa da família, ela também compreende os arranjos familiares que esse PL 1904 irá gerar? Estamos falando da perpetuação de vínculos de violência incestuosa, e ainda no contínuo abandono de fetos, que assim que paridos, automaticamente são esquecidos por uma militância fanática que sacraliza a madre, mas abomina os direitos humanos e as políticas assistencialistas que garantem o mínimo de dignidade a essas crianças.
O Brasil que vemos hoje, com os olhos racionais caminha depressa para um abismo fundamentalista e autoritário, mas aquele que vemos com os olhos da fé, é maior que a teocracia que políticos de extrema direita e fundamentalistas lascivamente cobiçam. Diferente deste pesadelo, sonhamos com dias em que a justiça, a paz e a alegria frutifiquem, em dias que nossos ventres gerem vidas consentidas e desejadas, e que nossas crianças possam brincar sem medo da violação de seus corpos, crescendo em graça, beleza e sabedoria.
O Brasil que sonhamos não é feito de púlpitos e mercenários da fé, mas dessa miscelânea amorosa, criativa e diversa que nos dá motivos para prosseguir. Não iremos nos abalar com a maldade institucionalizada nas paredes concretas de empresas que se intitulam igrejas. Igreja é gente, e gente é para ter vida em abundância, porque Deus nos criou para isso, e a constituição do Estado laico nos garante também este direito, não somente para nós, mas para cada pessoa, independentemente de sua fé, crença, ideologia, orientação sexual, identidade de gênero, raça e etnia.
É por esse Brasil que dobramos nossos joelhos e clamamos todos os dias. É esse o Brasil que estamos construindo à revelia daqueles que desejam nos expulsar do corpo de Cristo. Em nome de uma fé que valoriza a vida em sua plenitude, clamamos por justiça e dignidade para todas as mulheres. Não em nosso nome, não ao PL 1904/24.
Pâmella Campos
evangélica há mais de 20 anos, historiadora da religião, vice-presidente do O Reino em Pessoa, uma das idealizadoras do Mulheres Profetizando Vida.
Redes sociais: @pamellacampos96 @oreinoempessoa @mulheresprofetizandovida
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