O horror ao Feminino e o PL 1904 

  1. Breves considerações sobre a natureza e objetivos do PL 1904: 
     

“[…]o direito à autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós de proteger a vida de qualquer um, mesmo um ser humano formado com 22 semanas” 
José Hiran Gallo, Presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina) 

O PL 1904, que pretende equiparar abortos realizados após 22 semanas de gestação, mesmo em caso de estupro, ao crime de homicídio, é justificado por seus autores e apoiadores como sendo “uma defesa da vida”, o feto, é portanto, uma tela em branco, a vítima perfeita na qual pode-se escrever tudo o que há de belo e puro e na humanidade, humanidade essa, negada à meninas e mulheres que tem sua autonomia cerceada por um projeto que estabelece que o juiz pode mitigar, ou mesmo deixar de aplicar a pena, “se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”. A mutilação do corpo feminino, é portanto, a punição desejável. 

  1. Vagina Dentata e o Monstruoso Feminino 
    Feriu-o duas vezes na nuca e decepou-lhe a cabeça. Desprendeu em seguida o cortinado das colunas e rolou por terra o corpo mutilado.” 

Judite 13:10 

A teoria freudiana clássica atribui o tabu do corpo feminino ao horror da castração (Chaves, 2013), o menino, ao encarar os órgãos genitais de sua mãe, crê que ela foi castrada, teve seu pênis retirado, ele teme então, que seu pai o castre; o corpo feminino, está associado, portanto, à falta, o homem teme o corpo feminino, porque a ideia de emascular-se, tornar-se como mulher, lhe é aterrorizante. Teóricas feministas há muito contradizem a teoria psicanalítica clássica, procurando compreender o horror ao corpo feminino em outros termos. O mito da Vagina Dentata, presente em diferentes culturas, apresenta o próprio genital feminino como objeto de castração (Creed, 1993), a vagina com dentes que ameaça mutilar o pênis, revela o poder que o corpo feminino detém e o horror que produz, em um dos mitos descritos por Neumann, um peixe carnívoro habita a vagina da Mãe Terrível, o herói é aquele que quebra os dentes da vagina, vencendo assim a Mãe e tornando-a uma mulher (Neumann, 2015). O horror ao corpo feminino, está associado, não à um objeto externo (o Pai) que ameaça castrar o homem, mas à própria genital feminina que possui poder para mutilar o corpo masculino. O horror à mulher não está atrelado à falta, mas precisamente ao excesso, excesso de sangue, excesso de vida, excesso de poder. A vagina, o útero, os seios, tudo aponta para o poder do corpo feminino de gerar a vida, de a nutrir e de a destruir, o homem, ao contemplar o corpo feminino, se depara com um poder misterioso, imprevisível e ingovernável (Kristeva, 1982) 

  1. Cabeça/Corpo – Forma/Matéria  

“Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo.” 

1 Coríntios 11:3 

Com a revolução científica a mulher emerge do aristotelismo medieval, a descoberta do processo ovulatório põe fim à teoria de que o homem é a única potência ativa na geração da vida. A ciência médica, no entanto, inseparável aliada do colonialismo (Fanon, 1994; Peiretti-Courtis, 2021) dá continuidade à antiga associação entre o masculino e a forma, o feminino e a matéria, para Carolyn Merchant (1980) “A natureza indisciplinada estava simbolicamente associada ao lado sombrio da mulher […] como a natureza caótica e selvagem, a mulheres precisavam ser dominadas e mantidas em seu lugares” O horror ao corpo feminino e o temor diante da natureza desorganizada traduzem-se em dispositivos de controle e subjugação. A matéria informe e irracional do corpo feminino deve ser controlada pelo poder formativo da mente masculina (Beattie, 2013), o corpo e os poderes reprodutivos e gestacionais da mulher devem ser controlados pelo estado, pela igreja e pela classe médica. O corpo deve estar sujeito à cabeça, sob pena de ser mutilado, torturado, preso ou morto.  

  1. Direitos reprodutivos e defesa da vida 
    “a Igreja Católica neste momento considera importante a aprovação do PL 1904/2024, mas continua no aguardo da tramitação de outros projetos de lei que garantam todos os direitos do nascituro”  
    Nota da CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil) sobre o PL 1904/2024 

O flagrante sadismo do PL 1904, que segundo seu autor, propõe medidas socioeducativas para meninas, menores de idade, abusadas sexualmente, demonstra que o ataque aos já escassos direitos reprodutivos no Brasil precede ataques ainda mais flagrantes, à mulheres e à infância, foi reaberto recentemente, na CCJ (Comissão de Consitutição, Justiça e Cidadania) o projeto de lei que propõe a legalização do trabalho infantil. As tendências reacionárias seguem reproduzindo o que já acontece no EUA, onde mulheres estão sendo presas por abortos naturais e o direito à métodos contraceptivos está sendo contestado. O apoio da Igreja Católica, que considera o aborto como pecado grave em qualquer situação (inclusive em casos de estupro e risco de vida da mãe) e o “estatuto do nascituro” que também tramita na câmara, demonstram que os ataques à dignidade de meninas e mulheres não cessarão, é preciso, portanto, não recuar diante da ofensiva reacionária, antes, obstruir os projetos da extrema-direita e reinvidicar o corpo feminino e fortalecer as legislações que versam sobre os direitos reprodutivos. Essa é a ampla defesa da vida: da vida de meninas, mulheres e de pessoas que gestam.  

Referências:: 

PODER360. Autonomia da mulher não deve prevalecer em casos de aborto, diz CFM. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/poder-congresso/congresso/autonomia-da-mulher-nao-deve-prevalecer-em-casos-de-aborto-diz-cfm/> Acesso em: 21 jun. 2024. 

CHAVES, Ernani. A Cabeça de Medusa. Clínica & Cultura v.II, n.II, jul-dez 2013, 91-93. 

CREED, Barbara. The Monstrous-Feminine. [s.l.] Routledge, 1993. 

NEUMANN, Eric. The Great Mother: an analysis of the archetype. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2015.  

KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: an Essay on Abjection. Tradução Leon Roudiez. [s.l.] Columbia University Press; Reprint edition, 1982. 

FRANTZ Fanon. A dying colonialism. Tradução: Haakon Chevalier. [s.l.] Grove Press, 1994. 

‌PEIRETTI-COURTIS, Delphine. Corps noirs et médecins blancs. [s.l.] La Découverte, 2021. 

MERCHANT, Carolyn. The death of nature: women, ecology, and the Scientific Revolution. San Francisco: Harper and Row. 1980 

BEATTIE, Tina. Theology after postmodernity : divining the void–a Lacanian reading of Thomas Aquinas. [s.l.] Oxford University Press, 2013. 

“Permitamos viver a mulher e o bebê”: CNBB considera importante a aprovação do PL 1904/2024 – CNBB. Disponível em: <https://www.cnbb.org.br/nota-cnbb-pl-1904-2024-debate-aborto/>  Acesso em: 21 jun. 2024. 

Black woman charged after miscarrying in bathroom shares feelings about arrest. Disponível em: <https://www.nbcnews.com/news/nbcblk/brittany-watts-miscarriage-bathroom-charged-rcna135861

Debate sobre proposta que reduz a 14 idade mínima para que adolescente possa trabalhar volta à CCJ da Câmara; entenda. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/06/18/debate-sobre-proposta-que-reduz-a-14-idade-minima-para-que-adolescente-possa-trabalhar-volta-a-ccj-da-camara-entenda.ghtml>  Acesso em: 21 jun. 2024. 

Se não quiserem votar esse, votamos o Estatuto do Nascituro”, diz autor de PL Antiaborto por Estupro. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/06/autor-do-pl-antiaborto-por-estupro-diz-que-proposta-vai-a-voto-mas-parlamentares-recuam-apos-pressao.shtml> Acesso em: 21 jun. 2024. 


Bru Dutra tem 19 anos e formação técnica em segurança do trabalho. Seus interesses incluem teologia católica, teoria queer e feminismo. 


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