Em um ano eleitoral, a discrepância entre o discurso da extrema direita e as necessidades reais da população brasileira torna-se evidente. O Congresso Nacional acumula mais de 13 mil projetos de lei em tramitação, abrangendo áreas essenciais como reforma nas leis trabalhistas, acesso à educação e saúde de qualidade, fomento ao esporte, segurança pública, entre outras. Esses projetos têm o potencial de impactar diretamente a vida dos brasileiros e brasileiras, promovendo avanços significativos em diversos setores. Entretanto, a presença de grupos no Congresso que se aproveitam da desinformação para gerar atrasos nas votações desses projetos é uma realidade preocupante. Esses grupos, muitas vezes alinhados à extrema direita, têm como estratégia desacelerar as políticas de reconstrução do país para colocar em evidência projetos conhecidos como “pauta de costumes”. Ao disseminar informações falsas ou distorcidas, eles criam obstáculos para a implementação de reformas necessárias e prejudicam o avanço nacional.
Na noite do dia 12 de junho, a bancada evangélica, juntamente com o presidente da Câmara Arthur Lira (PP- AL) conseguiu colocar em votação a proposta do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Uma proposta inconstitucional que visa equiparar o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, aumentando a pena para até 20 anos de prisão, pena maior que do crime de estupro que é de 10 anos. No outro dia a proposta ganhou grande repercussão contrária nas redes sociais, no parlamento e nas ruas. As manifestações populares tomaram ainda mais força quando descortinaram a verdadeira intenção do grupo conservador no congresso: proteger criminosos, criminalizar crianças e desumanizar os corpos das mulheres.
As consequências deste projeto de lei são completamente inconstitucionais, pois colocam em risco a vida de milhões de meninas, que seriam forçadas a ter os filhos de seus estupradores, e de mulheres que seriam obrigadas a levar adiante gestações resultantes de violência sexual. Muito além de ser apenas um projeto moralista contra o aborto, a proposta visa transformar vítimas em criminosas e crianças em mães. A aprovação desta proposta afetaria principalmente as crianças, cujos casos de abuso sexual e gestação frequentemente demoram a ser identificados, resultando na busca tardia pelos serviços de aborto legal.
Por outro lado, observamos as histórias dos homens que escrevem as leis neste país, os quais, coincidentemente, compartilham os mesmos interesses: proteger seus pares. Um caso recente em Anápolis ilustra bem essa questão, onde mais de 50 denúncias de violência sexual foram feitas contra um pastor, envolvendo meninas, adolescentes e jovens. Se pesquisarmos no Google “Quantidade de pastores presos por estupro em 2024”, encontraremos diversas páginas informando que, só no primeiro semestre deste ano, 82 pastores foram presos por esse crime. Este é apenas um dos indícios que revelam os interesses da bancada evangélica por trás da PL 1904.
Em sua última manifestação no Senado, Eduardo Girão (NOVO – CE) iniciou sua fala declarando: “Eu considero a causa das causas: a defesa da vida desde a concepção, porque é direito à liberdade de nascer”. O senador trouxe uma contadora de histórias para “performar” como um suposto feto submetido a um procedimento de interrupção de gravidez, um momento que muitos consideraram um “circo”. Entretanto, o que mais chama a atenção é a frase pronunciada pelo senador: “a causa das causas: a defesa da vida”. O grupo político de Girão tem se esforçado para difundir a ideia pró-vida como um princípio incontestável, mas acolher essa narrativa enquanto defende o armamento da população e a pena de morte tem sido bastante indigesto.
“Todo poder emana do cano de uma arma” esta frase foi dita pela deputada federal Julia Zanatta em 2023. Atualmente Julia é uma das deputadas que votam a favor do projeto de lei 1904, assim como Carla Zambelli, que defendeu o projeto da forma mais vazia possível “não quer o bebê? Entrega para o aborto! ”. Esta manifestação de Zambelli só comprovou a assertividade da ministra do STF Cármen Lúcia em usar o termo “desinteligência natural” e “burrice” para comentar a conduta da deputada em outro episódio de charlatanice.
O que podemos perceber é que grupos da direita tem se mobilizado para fazer tramitar nos debates públicos as pautas de costumes com o intuito de taxar as novas candidaturas e as bases do governo de “abortistas” e até mesmo “homicitas”. Assim como foi feito em 2018 com a proliferação da indústria de Fake News. Se por um lado o debate político avança lentamente para a inclusão de políticas públicas que atendem as necessidades da realidade brasileira, por outro lado ainda vemos um debate político interessado em gerar transtornos e desinformação. Infelizmente, políticas públicas para proteção de mulheres neste país ainda está longe de ser um problema. De acordo com o jornal O Globo, uma mulher sofre violência sexual no país a cada 46 minutos, ou seja, enquanto estamos submersos sobre as nossas preocupações do cotidiano uma mulher pode estar sofrendo a pior das violações em seu corpo.
Em 1945, a autora Virginia Woolf apresentou a seu público leitor a perturbadora realidade de uma cena de estupro e como isso pode destroçar a mente de uma pessoa. Ao ler uma notícia, Isabela, personagem criada por Woolf, passa a imaginar a dor sentida pela vítima: “Aquilo era real, tão real que ela conseguia ver o quarto, a cama, a moça que gritava batendo no rosto dele”(WOOLF, 2008 p. 43). Acredito que a reação de Isabela não difere da das mulheres que, hoje em dia, convivem diariamente com notícias de estupro. A sensação perturbadora que acompanha esses relatos é a de falta de segurança, e a percepção de que, a qualquer momento, podemos ser violentadas.
O Projeto de Lei 1904 só intensifica esse sentimento de terror, pois sua aprovação legitima a defesa de um grupo que utiliza a fé para propagar discursos de violência. Além disso, a proposta legislativa afronta princípios constitucionais fundamentais, como os direitos das mulheres, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar e o melhor interesse da criança. A partir disso fica em nossas cabeças a seguinte pergunta: Por que, em momentos de criar pautas polêmicas, a política conservadora demonstra tanto interesse em violar os direitos das mulheres e controlar seus corpos?
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA
WOOLF, Virginia. Entre os Atos. Editora Novo Século. São Paulo. 2008
Natália Médice – Professora de História do Estado de Minas Gerais, graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente mestranda na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Teoria da História e História da Historiografia.
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