Um poema sobre a enxaqueca 

Ao Armando 


Dia quente e luz forte. Sigo pelos cantos
e logo sei que ela já vem vindo.
E sinto a energia me evadindo.
Saio com a testa em chamas e em prantos.

Passo da constatação a um prelúdio
dessa ópera profana e invulgar.
Já pressinto o bravo trafegar
e os olhos prenunciam o dilúvio.

E quando eu sinto que a dor me assola,
paro o olhar e miro um ponto longe.
Meus ombros caem, os meus pés me fogem
e os meus nervos saltam como molas.

Nessa paisagem cheia de estática,
a eletricidade vai se formando.
E eu sei que ela vem, mas quando
é coisa que não explica a matemática.

Eu vejo o céu como num dia findo,
com trovões e trovoadas chacoalhando;
e o meu crânio sai rumorejando,
como uma nuvem carregada vindo.

Faíscas de luz e aço já se formam;
nascem espirais e estalactites;
no meu crânio pululam dinamites
e em pó os meus ossos se transformam.

Essa luz cegante que me angustia
surge no dentro do meu olhar de morto;
eu tinha até agora um coração roto,
envolto em mistério e fantasia.

E ela vem e volta pela minha fronte,
desenhando a dor em longas fractais;
e eu já sinto que não posso mais
fugir da dor atravessando a ponte.

Ela é quem insiste e que me atravessa
como a cimitarra fria de um guerreiro;
quando infensa o crânio, parte-o inteiro,
varando-me os nervos todos da cabeça.

Então para o meu alívio imediato
tomo remédio e deito no escuro.
E vou co’o peito de encontro a um muro,
e o meu nariz co’a laje faz contato.

Entro num quarto escuro, numa gruta;
onde me escondo pra sair de novo,
tal qual o embrião dentro do ovo
que nada vê, capta ou escuta.

E nessa escuridão em que, eu, lasso,
entrego-me à agonia dessa fronte;
tenho vontade de me jogar dum monte,
fazendo a Via Crucis passo a passo.

E lembro-me dos poetas de antanho,
de Rimbaud, Villon, e de Augusto;
e os seus versos chegam-me, vetustos;
e o meu sofrer já não se faz tamanho.

Eu vejo dragões, e grande companhia
tocando uma banda na cabeça.
Sinto um machado me abrindo em fresta,
e tenho ânsias de vômito e azia.

Deito-me no chão, em sutil decúbito;
coloco o travesseiro bem na testa,
e penso na vida que me resta;
e vou beijando a morte bem de súbito.

E anda por ali a bicharada
no chão de tábua do meu quarto exíguo.
Eu ouço, do cômodo contíguo
os cupins nas quinas descascadas.

Posso ouvir os seres microscópios;
as coisas que de dia nós não vemos;
eu falo com os anjos e com os demos,
sinto o sabor dos lótus e dos ópios.

Vejo as almas condenadas e sofredoras;
os vermes nas frutas fazendo sua festa;
no verde, as formigas na floresta;
as moscas varejeiras voadoras.

Penso no lixo apodrecendo na lixeira;
da cozinha, cheiro de carne morta;
penso nos pregos perfurando a porta,
nos frutos de uma raquítica amoreira.

E me vem um desejo intenso de poder
me juntar à terra pelo ataúde
Deitar o corpo sobre um talude,
deixar o sangue me arrefecer.

Pois sinto essa agonia de morrer
dar cabo de mim pela dor pungente.
Não quero ver ninguém; toda essa gente
Que sorri, ama e gosta de viver.

Eu sou um inveterado pessimista,
tenho o meu coração amargo e roto;
meus sentimentos cheiram-me a esgoto;
da vida fui um inútil arrivista

que se deu mal com negócios e dinheiro;
não viveu sã e nem dignamente.
E se de algum viveu, nem foi contente,
nem se empenhou, nem deu-se por inteiro.

Eu só passei a vida alardeando
essas dores, e do quanto elas me ardem;
como aqueles tais navios em que partem
os marinheiros com os velames enfunando

Assim dela falei com todo mundo
pra que de mim alguém sentisse pena.
Gritei ao Zéfiro; toquei sobre as avenas
e só fiquei cada vez mais iracundo.

Porque essa dor que hoje me desata
há de me acompanhar ao cemitério;
mas dia eu hei de amá-la; é um mistério
a gente gostar tanto do que mata.

Passo no olhar do teto ao chão,
onde me pus para não me levantar;
e percebo ali berrando, num lugar
o silêncio duma antiquíssima amplidão.

E eis que me vem aos ouvidos uma voz
tal qual o grito de um ávido arremedo:
“Quisera eu te decifrar, daria um dedo
pelo teu pensamento mais feroz”.

E logo descubro que essa voz sombria
sou eu que, dentro dos meus suplícios,
construí, como base dos meus vícios
o desejo de fazê-la apenas minha.

“Ah, se vislumbrassem como sofro tanto”,
assistiriam a mim, às escondidas,
nos recônditos antros dessas vidas,
os solilóquios amargos dos meus prantos.

Mas é desejo, é fogo, é labareda
o que me vara a carne e leva a mais augúrios;
eu gostaria de ter como murmúrios
a cantilena de uma alma leda.

Ser santo, não ter que suportar ninguém!
Dar um salto de fé, fruir só do espírito,
daquela onipotência do onírico,
pela qual construímos o Além.

Mas volto à minha cabeça dolorida,
que essas coisas de pensar me cansam;
e assim dentro do meu crânio dançam
as vidas desbaratadas da minha vida.

Vejo minha mãe e pai, irmãos e primos,
a circularem pela minha infância;
e noto, não sem uma inefável arrogância
os meus tenros anos sem arrimos.

E a dor vai então se esfacelando,
e eu penso na amizade que desata;
é como se numa travessa de prata
não se pudesse servir um chá bem brando.

Nisso, enquanto o fármaco faz efeito,
percorrendo todo o sangue do meu corpo,
eu vou assim pintando um traçado torto,
cujo próprio endireitar só traz defeito.

É que ele me dá um gelo bem na nuca,
e vai descarrilhando os pensamentos;
e vou adormecendo no momento
em que se vai findando minha busca.

E quando volto a mim, ora, afinal,
já não percebo o que mais percebo.
Pareço um álgido emblema grego
Calcado defronte de um fanal.

Levanto-me; tateio no escuro, e sei
que a madrugada anda a altas tantas.
Posso ouvir os passos das tarântulas
de tão dopado com o remédio que fiquei.

E uma aflição aterradora e amarga
dana-me o cérebro e começo a escrever.
E logo me boto, tenso, a perceber
como é difícil falar dessa chaga.

Paulo Roberto de Almeida é livreiro em construção, fundador da Atena Books.


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