A minha vida, até aquele momento, havia se resumido em brincar, ir à escola e àquela que até então era a minha maior e única paixão: o futebol.
A infância naquelas últimas décadas do século XX, já marcada, no Sul global, pelos toques agridoces da globalização, ainda carregava consigo uma certa relação de artesania entre o menino e o mundo: a televisão já passava programas de tom preconceituoso e com estéticas duvidosas, mas enquanto ela ficava ligada os meninos jogavam bola na rua; o celular já trazia suas distrações artificiais e com estéticas duvidosas, mas quase nenhum menino tinha o seu; o videogame já trazia jogos que hoje são nostálgicos e com estéticas duvidosas, mas nem todos tinham um console em casa e, quando tinham, nem sempre jogavam. Ainda havia espaço para pipas no céu, carrinhos de rolimã nas ladeiras, figurinhas batidas no chão, pique-esconde, polícia e ladrão…
O tempo passou e agora é coisa comum ver crianças que mal sabem falar, mas já possuem o seu smartphone; mal sabem ouvir, mas já obedecem à nova trend do momento; mal sabem andar, mas já ficam vidradas em telas e tecnologias que, se por um lado prezam por uma estética não tão duvidosa, haja vista os enormes avanços feitos por inteligências artificiais e afins, acabam deixando de lado uma relação mais orgânica e visceral com o mundo lá fora.
Hoje, bem mais velho, vendo todas essas transformações acontecerem no mundo, de forma cada vez mais rápida, em uma incessante busca pelo progresso, percebo que aquela primeira parte da minha vida vem se tornado algo cada vez mais raro para os moleques do nosso país.
Não quero que toda essa divagação sobre tecnologias, globalização, transformações culturais e quejandos faça com que eu pareça um ranzinza senhor de meia idade que fica relembrando um passado que jamais voltará. Não, como poderá ser notado adiante e já pelo título deste texto, eu gosto mesmo é de pensar na impermanência. Se falo das mudanças, falo sem julgá-las. Não sou inocente a ponto de dizer que a minha fala não tem posicionamento. Tem, é claro! No entanto, é possível posicionar-se sem perder um olhar de encanto e respeito para tudo aquilo que se apresenta a nós, mesmo as coisas que não nos convencem tanto assim.
Esse papo todo me lembra de quando meus pais me matricularam na escolinha de futebol do bairro. Eu tinha de seis para sete anos e vestir aquele uniforme nas terças e quintas depois da escola era uma das melhores sensações da semana. Só não ganhava, é claro, da sensação de vestir este mesmo uniforme aos sábados de manhã. Dia de treino de campo. Eu e os outros meninos mínimos, correndo naquele enorme tapete verde que era o gramado da escolinha. A bola, naquela época, também era imensa. E o que dizer das traves? Elas pareciam gigantes de madeira abraçados pelas redes que a gente adorava balançar. Coitados dos goleiros!
Imerso nesse ambiente futebolístico, naturalmente o gosto por jogar bola puxou também o gosto por assistir futebol, acompanhar e torcer por um time. Uma coisa retroalimentava a outra.
Ver o craque do meu time marcar gol e comemorar com uma dancinha para as câmeras significava que no fim de semana seguinte, quando saísse gol do meu time na escolinha, todos nós iríamos comemorar reproduzindo a dancinha vista pela televisão. Perder de lavada no jogo da escolinha no sábado e ficar remoendo o que poderia ter feito de melhor para não chegar até aquele resultado significava me preparar para quando o meu time perdesse uma final de campeonato para o seu maior rival.
Estes afetos e emoções trazidos pelo futebol me atravessavam e ganhavam força a cada nova partida do meu time e a cada novo treino na escolinha. As relações com meus pais passavam por isso, os meus amigos mais próximos eram também os colegas da escolinha, os primeiros textos nas aulas de português tinham o futebol como mote, as cores das roupas que eu gostava eram, claro, as mesmas do meu time do coração. Quer dizer, o sentido das coisas, dentro da minha adolescente cosmovisão, passava quase que inteiramente pelo futebol.
Só que como eu já adiantei mais cedo, este texto é sobre impermanências. E aquele sentido tão forte da infância e da adolescência, trazido pelo futebol, um dia foi quebrado. A responsável por esta quebra foi a Duda.
Durante muito tempo, ela foi apenas uma colega, mas com o aumento das nossas conversas eu fui percebendo que ela era muito mais. Enquanto eu só queria saber de futebol, ela já estava começando a ler uns livros difíceis, coisa de Filosofia e Antropologia, e sempre tinha as melhores sacadas sobre os assuntos do momento. Ser boa aluna, pra ela, não era nenhum esforço. Não sem motivo, ela era a queridinha dos professores, que sempre a elogiavam. Além de tudo isso, ela tinha aquele sorriso, que não demorou muito para me fisgar completamente.
Só que eu era só mais um menino que gostava de futebol, mais comum do que isso, impossível. Tive que me esforçar muito para ser notado pela Duda e, depois de muito papo, finalmente tinha conseguido chegar num ponto em que ficar com ela parecia ser uma possibilidade real no horizonte: festinha na casa da Pri no sábado! Durante a semana, na escola, a Duda deu vários sinais de que iria rolar e eu fui desejando que a semana passasse cada vez mais rápido.
Quando chegou a sexta, no entanto, foi que eu me liguei: aquele era o sábado de viajar com o time da escolinha para um jogo em outra cidade, aquele também era o sábado em que, à noite, meu time do coração disputaria uma final de um campeonato que há décadas ele não vencia.
Por conta da Duda, para o treinador da escolinha, eu passei mal. Para o meu time do coração, eu tive que deixar para ver os gols do título no domingo de manhã. Internamente, contudo, tudo isso foi justificado quando passava pela minha cabeça e pelos recém nascidos pêlos do meu corpo, o comichão de lembrar daqueles beijos dados na varanda da casa da Pri. Foi ali, naquele momento, que percebi pela primeira vez a impermanência dos sentidos.
Rogério Arantes é natural de São Gonçalo do Sapucaí e radicado em Juiz de Fora, vive algumas das muitas Minas Gerais. A escrita, desde cedo, esteve presente em sua formação e em suas buscas artísticas. Amante da arte, da filosofia e do futebol, procura tornar difusas as fronteiras entre estas três temáticas dentro de sua produção literária. Atua como professor e produtor cultural, além de escrever contos, poemas e canções.
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