As duas falsas polêmicas sobre religião na filosofia (política) 

Possivelmente a leitora ou o leitor já leu ou ouviu em algum lugar duas citações, de dois diferentes filósofos alemães, que são geralmente interpretadas como ataques à religião. Essas citações, frequentemente interpretadas de forma duvidosa (ou intencionalmente desonesta), acabam despertando paixões entre aqueles que as professam ou que as repudiam. Muitas vezes nenhum dos lados dessa contenda entende plenamente o que está defendendo ou atacando. 

A primeira citação, de autoria do filósofo Friedrich Nietzsche, atesta que “Deus está morto” 1. A segunda, de autoria do filósofo, economista e teórico político Karl Marx, aduz que “a religião é o ópio do povo/das massas”2

A frase de Nietzsche, repopularizada durante o breve período de ascensão do (neo)ateísmo – principalmente na internet – durante os anos 2000, encontrou lugar na cultura popular da época, servindo como um aríete para atacar religiosos em discussões virtuais e gerou, ademais, respostas que variaram entre o meme “Nietzsche está morto” (jocosamente assinado por Deus) e um documentário religioso batizado de “Deus não está morto” (e suas sequências). 

Removida de seu contexto – a ideia3 é apresentada nas obras A Gaia Ciência e Assim Falou Zaratustra – a citação acabou perdendo considerável parte de seu sentido e sendo esvaziada. No caso de Nietzsche, não foi a primeira e provavelmente não será a última vez em que um de seus conceitos-chave é utilizado de forma intencionalmente desonesta para sustentar uma argumentação que não era defendida pelo próprio autor: basta recordar o uso, pelo nazismo, do conceito nietzscheano de übermensch ou além-homem

Em A Gaia Ciência4 um personagem enlouquecido vaga por uma praça e grita em busca de Deus. Ao ser interpelado por populares que faziam piadas de sua busca, o personagem declara não apenas que deus está morto, mas que todos nós somos seus algozes. O diálogo, quando disposto em seu contexto, é bastante esclarecedor: 

O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos” (Nietzsche, 2017, p. 79). 

A afirmação da morte de Deus, ainda, difere frontalmente da conclusão – surgida da má interpretação ou da má intenção – de que Deus não existiria. Afinal, como poderia algo que não existe ser morto? Para entender o verdadeiro significado da afirmação original é necessário retornar à conjuntura sociocultural vivida por Nietzsche: a Europa, durante a virada do século XVIII para o século XIX, sofreu diversos câmbios com a consolidação do Iluminismo, afastando – em parte – a onipresença das explicações metafísicas em prol das explicações científicas. O ser Deus, então, seria morto (ainda que sua sombra seguisse existindo por mais tempo) por nossas próprias mãos, uma metáfora para a desnecessidade da metafísica para explicar o mundo. 

Por outro lado, a frase de Marx, em muito por conta do próprio autor, é instrumentalizada politicamente para a acusação de que os “marxistas” – referindo-se, geralmente, apenas aos adeptos de uma socialdemocracia bastante leve e não aos próprios marxistas – querem destruir a religião. Em época de eleições – como a que vivemos no momento em que este breve texto é escrito – praticamente qualquer um que não seja abertamente de direita reacionária é considerado “marxista”. Considerando a interpretação errônea da citação anterior, “obviamente” todo “marxista” quer “destruir a religião”. 

Se analisarmos o conteúdo – dentro de seu contexto no livro Crítica da Filosofia do Direito de Hegel5 – da expressão utilizada por Marx, veremos que a ideia original não era uma defesa do fim da religião, mas sim a explicação da religião como um sintoma de uma sociedade adoecida e explorada: 

A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo (Marx, 2010, p. 100). 

A despeito de parecer – em parte por seu uso em debates – um ataque deliberado à religião, é necessário analisar pausadamente essa citação para entender seu real significado. O ópio é uma substância da qual se obtém efeitos analgésicos, narcóticos e hipnóticos. Esses efeitos, no corpo, produzem um estado temporário de ausência de dor e de fuga de uma determinada realidade. Figurativamente, na sociedade, esse ópio representado pela religião seria uma forma de anestesia contra as agruras vividas pelas pessoas. A religião é, portanto, um anestésico que existe enquanto as mazelas sociais subsistem, uma forma de escamotear a dureza da realidade e um sintoma do problema (não o problema em si). 

Em nenhum momento, nesse texto ou em outros, Marx prega a dissolução ou a destruição das religiões. Sua crítica, no entanto, apresenta uma solução que, caso implementada, tornará a religião desnecessária e sem sentido em sua existência: a melhora das condições materiais de vida. Em vez de travar combate contra a religião (descrita por Marx como uma ‘felicidade ilusória’), busca-se obter a ‘felicidade real’, ou seja, a solução dos problemas que levaram, em primeiro lugar, à necessidade da religião. Ataca-se a causa, não as consequências. 

Embora esse ensaio definitivamente tenha ficado mais densamente teórico que o anterior, aspecto pelo qual desde já peço desculpas, é importante compreender as ideias de ambos os filósofos para evitar argumentações rasteiras que eventualmente aparecem em debates acerca de filosofia (política) e religião. 

Referências: 

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010. 

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017


Bruno Cavichioli – Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pelotas com Estágio Doutoral realizado junto à Universitat Autònoma de Barcelona (UAB/Espanha). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pelotas. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória (NUPPOME/UFPel). Atualmente pesquisa a instrumentalização política do medo durante as ditaduras de António Salazar (Portugal) e Francisco Franco (Espanha), além de também pesquisar sobre legados autoritários na Ibero-América.


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