Sobre Machados e Rochas

Sentei-me em frente ao computador e descobri um documento aberto com a última frase que escrevi: “ler, porque é uma forma de resistência”. Não é minha, é de Ana Maria Machado. A mesma Ana que vem como uma flautista mágica encantando nossos ouvidos há mais de cinquenta anos com histórias infantis.

Magicamente, encontrei nesta semana um amigo escritor que me falou de seu encontro com a autora durante a bienal do livro no Rio de Janeiro. Ele estava lançando seu primeiro livro, num misto de entusiasmo e desespero. Ela contou a ele que tinha 38 anos ao lançar seu primeiro livro infantil, a mesma idade que ele naquele momento. Isso encheu meu amigo de afeto. Livros contam histórias que nos unem.

Durante a conversa me lembro de uma reportagem que diz que Ruth Rocha, outra grande escritora infantojuvenil, renovou contrato para publicar pelos próximos quinze anos. Ela tem 93. Eu sorrio com a esperança de uma vida que ultrapasse o marco da família, que até agora conta 80 anos. Um único homem longevo, numa família que tem coração de passarinho, e da qual só conheço 50% da história. Não tenho muitas fotos da família, mas sim muitas histórias da nossa tradição oral.

Sonhei com o dia da minha morte anos atrás. Não chegava nem perto dos 80 anos do meu tio, quiçá dos 93 de Ruth. Ou dos 82 de Ana Maria Machado. Ou do outro Machado, que morreu aos 69 anos, redescoberto pelas gringas nesses tempos de inteligência artificial e influenciadores digitais. Nunca imaginei um Machado em 3D e falante, lido em inglês sobre as coisas nossas de um Rio antigo. Ainda assim, me emociona o reconhecimento tardio. Livros encantam diversas gerações de leitores.

Ler tem sido meu Machado e minha Rocha. Literatura infantil se espalha pela casa, pelas prateleiras abarrotadas, e histórias do oriente tomaram as últimas semanas. Sherazade invadiu meu quarto e narra para mim As mil e uma noites. Não quero que ela morra nunca. Nem que crianças morram em ataques e guerras das quais nada sabem. Descubro que eu também nada sei do Oriente. É preciso ler para entender melhor sua cultura.

Passeando por uma rede social apareceu um vídeo de uma fonte que gosto muito sobre ciência e física, e parei para assistir ao testemunho: “Você não precisa de livros ou faculdade para ter sucesso. Eu mesmo nunca fiz nenhum dos dois e hoje sou presidente da Associação Brasileira de Terraplanistas.” Perplexa eu, perplexo tu, perplexos nós. O futuro é uma astronave que tentamos pilotar, disse o poeta. Esse parece um futuro à deriva, numa nau adernando muito para estibordo.

Quebrar estereótipos se faz na infância, com livros que mostrem outras formas de viver, com acesso à cultura, teatro, filmes, música, museus, história, livros – de novo eles, e todos os tipos de arte. A gente avança, e o retrocesso quer a todo custo nos fazer estancar repetindo a frase “no meu tempo era melhor”. Cada tempo tem seu melhor, mas nosso tempo não pode ser bom se andam censurando Ziraldos, Jefersons, Djamilas, Genis… Livros antirracistas têm sido continuamente invalidados por motivos banais e recolhidos em escolas pelo Brasil. Qual formação estamos dando as nossas crianças?

Restringir o acesso aos livros foi um recurso político usado por muitos anos para manobrar as massas que, sem conhecimento de seus direitos, apenas acatava o que era dito pelos outros. Sem tempo para leitura, sem tempo para refletir sobre a vida e as explorações a que estamos sujeitos, somos reféns nas mãos de chatbots, deep fake e algoritmos mal-intencionados. Uma vida sem livros reduz nossa imunidade.

Lembro dos livros infantis que conheci apenas quando adulta, lendo para os meus filhos. Lembro das histórias que li quando criança. Admiro Machados e Rochas. Um dia sonho em inspirar crianças para um mundo com respeito à diversidade, assim como eles fizeram. E me apego a frase de Ana Maria que achei ao acaso: “ler, porque é uma forma de resistência”. Insistir em resistir. Para sempre, amém.


Elaine Resende é arquiteta, doutora em engenharia civil e escritora. Contribui nos blogs Sabático Literário, Coletivo Escreviventes, Escritor Brasileiro, Quarto 42 e no Mulherio das Letras Ceará. Tem um livro infantil publicado, A Professora da Lua, pela Amazon kdp, e participou de diversas antologias. Seu perfil no Instagram @cria.elaineresende traz resenhas de livros e filmes, alguns textos e pensamentos. No canal no YT (@Lendodetudoumpouco) discute literatura. É carioca e vive com o marido, dois filhos e seu cãozinho Byron. 


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