Depois de um tempão longe dessa Trama, começo este texto lançando uma pergunta retórica (espero): vocês já viram o vídeo da Glória Groove (a GG) cantando “A loba” com a Alcione? Quem ainda não viu, corre! tá disponível no streaming. Que que é aquilo, Gente?!?!
O cenário todo em vermelho quente, vibrante; Gloria e a Marrom cantando juntas, sentadas num sofá em forma de grandes lábios polissêmicos, carnudos, vermelhíssimos; as vozes lindas das duas ora em solo, ora em coro, aveludadas… A cena toda se traduz no ícone mais bem acabado do único Brasil que pode dar certo. O único.
Mas não se trata apenas de cantar bem; é muito mais que isso. É que a androginia psicodélica de GG corporifica pura pulsão de vida: incorpora libido, autoconfiança, vigor, amor próprio… Em síntese, é o antídoto perfeito contra o complexo de vira-latas que impede a presentificação do futuro do “país do futuro”.
Todo mundo sabe, ou deveria saber, que GG é uma drag-queen; repetir essa informação aqui talvez pareça redundante. Mas eu garanto: não existe redundância. Porque esse fato hipertrofia o simbolismo daquela performance de uma maneira tão intensa que eu duvido que alguém, hoje, já tenha instrumentos de análise sócio-antropológica, semiótica, filosófica (e o kct a 4) suficientes pra dar conta de tudo que rolou em cima daquele palco. Vamos precisar de pelo menos mais uns quinhentos anos. Aí vão começar a surgir coisas mais ou menos assim (mas melhores):
“No Brasil, a grande revolução do ego – o movimento psicossocial de re-conhecimento, assunção e valorização das próprias máscaras que, enfim, tirou o capuz e a corda das mãos do carrasco, o superego tupiniquim, e liberou geral para ser feliz e ponto – aconteceu há quinhentos anos, em 2024. Foi quando duas cantoras, Gloria Groove (a fenomenal GG) e Alcione (a mítica Marrom) se encontraram em cena. As duas cantaram juntas um sucesso da época, o samba-canção ‘A loba’, que falava do empoderamento da mulher de mais de 40 anos (até então, alvo de inúmeros preconceitos, porque naquele tempo ainda [ou já, que merda!] tinha gente muito, muito tosca). A reunião das duas cantoras era, na verdade, o encontro de duas entidades éticas e estéticas que só manifestavam seu fulgor por completo sob aquelas circunstâncias: num palco, com cenário e figurino esplendorosos, tendo diante de si um público em êxtase galopante. Galope, aliás, que simulava estaticidade, porque o Rocinante que as conduzia era uma enorme boca escarlate, assentada sobre quatro patas musculosas, místicas: o poder da mulher-dona-de-si, o carisma do povo brasileiro, o fascínio do canto virtuoso, e a liberdade de viver em paz consigo mesmo. É certo que cada uma dessas patas (“musculosas, místicas”) sustentava com igual vigor o peso das duas gigantes. Porém, a liberdade de viver em paz consigo mesmo era, com certeza, o principal ponto de apoio que, naquele momento (“naquele momento”, repito) impulsionava GG no salto definitivo sobre a trave da mesmice, o fosso da caricatura e o muro da realidade tangível. Afinal, dentro de Gloria Groove, em algum lugar muito íntimo, ininteligível, estava Daniel Garcia – o rapaz talentosíssimo que, aos 29 anos, dividia seu fulgor (ou sua “luz interior”, como diziam na época) com a pop diva queer, e, ao mesmo tempo, compartilhava os holofotes do palco com os mais de cinquenta anos de carreira de uma das mais prestigiadas cantoras populares que o país tinha tido até então. Não era uma missão fácil. Ainda assim, GG brilhou como nunca; o veludo carmim de sua voz ecoou firme, límpido, suave e potente, fazendo jus à singeleza de seu alter ego, à excelência de sua parceira de cena, ao apuro teatral do espetáculo, e à relevância política e social do tema daquela enunciação dramática. Em uma palavra, GG foi perfeita. O que estava ali era um homem travestido de mulher? Não. Definitivamente não. Era a ancestralidade exusíaca afro-brasileira encarnada em humanidade sem neuras, em plena expansão, feliz. A possibilidade de uma felicidade assim – mais que performatizada: vivida – animou milhares de pessoas com esperança e força genuínas, e o Brasil nunca mais foi o mesmo”.
Daqui a quinhentos anos talvez digam algo mais ou menos assim. Por enquanto, fica a incômoda certeza de que o signo linguístico é escasso. E parece que a escassez aumenta quando se trata de lidar com um acontecimento como o que aquela performance de GG fez brotar. É mais do que o nascimento de uma estrela (ou mesmo o da tragédia); é uma demonstração ostensiva da consciência do poder subjetivo de encantamento e subversão das aparentes incompletudes do mundo; é uma evidenciação do orgulho de si por deter o saber sobre onde, quando, como, por quê, pra quê e diante de quem vestir ou despir as próprias máscaras.
Em suma: GG lançou luz (vermelha!) sobre o ponto G da brasilidade.
Bora gozar!
Natural de São Gonçalo/ RJ, Luciano Nascimento é Professor do Colégio Pedro II. É licenciado em Letras (Unipli), mestre em Língua Portuguesa (UFRJ) e doutor em Literaturas (UFSC). Já publicou três livros autorais: “Bandeira banca, sinal vermelho” (Ed. Autografia), “A elefanta e o formigueiro” (Ed. Cândido), e “Jamelão – o jequitibaobá e o eco da voz do dono” (Imperial Editora). Selecionado em vários projetos literários, participa de antologias de textos ficcionais publicados pelas editoras Mórula, Oficina Raquel, Malê e Off-Flip. Colabora periodicamente, com o site A terra é redonda, onde escreve sobretudo artigos de opinião e ensaios curtos.
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