As bibliotecas comunitárias do Brasil, nascidas da ausência ou presença seletiva do Estado ao escolher tornar pouco acessíveis as políticas públicas de cultura nas periferias, não se cansam de construir estratégias e reinventar a roda para que a leitura chegue especialmente, para aqueles(as) que não são leitores ainda. Eu – uma mulher negra, educadora social, mediadora de leitura, organizo meus dias ao lado de centenas de pessoas que acreditam no poder da leitura, as quais escrevendo ou produzindo e distribuindo livros ou levando literatura para vários cantos, becos e vielas deste país, constroem um “Brasil que lê”, “Resiste culturalmente”, “Existe” e reinventa a própria existência.
A pesquisa Bibliotecas Comunitárias no Brasil: impacto na formação dos leitores, realizada pelo Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Grupo de Pesquisa Bibliotecas Públicas no Brasil (GPBP) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Centro de Cultura Luiz Freire, com a participação de pesquisadores da Rede Nacional de Bibliotecas (RNBC), coletou dados de 143 bibliotecas em 15 estados brasileiros. O relatório da pesquisa pode ser acessado na publicação “O Brasil que lê: Bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores”
Com as bibliotecas comunitárias, tenho aprendido a colocar luz naquilo, e principalmente nas pessoas e temas que estão invisibilizados, esquecidos, negligenciados. Nas bibliotecas comunitárias as palavras: negros, negras, mulheres, trans, povos indígenas, juventude, periferia, direito à cidade, direito à literatura, democracia, justiça, vida entram pela porta da frente. Temos construído, juntos, territórios letrados, falados, escritos.
Eu, que há algum tempo sou conhecida como Bel Santos do cemitério, da biblioteca do cemitério, da biblioteca na casa do coveiro, juntei-me aos(às) que enterram todas as tentativas de excluir do mundo letrado, os(as) que estão nas bordas das cidades. Tenho enterrado a tentativa de excluir jovens dos direitos à vida, ao livro, à leitura. O direito de ver-se no que lê. Estou com aqueles(as) coveiros(as) de uma história de negação de direitos. Coveiros e coveiras de “nãos” e desesperanças.
A Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura foi criada em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Estudo Comunitário(IBEAC) e um grupo de adolescentes, no extremo sul da cidade de São Paulo (Parelheiros), em um cemitério. Dá para saber um pouquinho mais do trabalho que é desenvolvido lá acessando o vídeo.
“Lemos no cemitério”. Lemos nas praias. Lemos nas ruas. Lemos nas Escolas. Lemos nas universidades. Lemos nos palcos de teatro, nas Feiras de Livros! Lemos! Lemos! Lemos porque sabemos que as palavras habitadas em nós, nos dão nova vida.
Temos dessacralizado a literatura e seus autores e autoras, afirmando como proclamou Antonio Cândido, que a Literatura é um Direito Humano. É para todos. É nossa também.
“(…) a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza” (…) A literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.”
(CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: Fester(Org.) Direitos humanos e…,Ed. Brasiliense, 1989, p. 122).
As palavras dos esquecidos e esquecidas, dos estranhados(as), rejeitados(as) por modelos de cidade para poucos, têm ganhado vida em nossas bibliotecas. Estas palavras, ao entrarem em nossos ouvidos por suas próprias bocas, colocam-nos em um lugar de escuta, fazem-nos lembrar que todas as vidas importam.
Lendo, observamos que as existências não são iguais. O nascer e o morrer é desigual. As vidas de negros, trans, mulheres, pobres nem sempre importam. Muitas vezes não importam nas ruas, não importam no desenho de políticas públicas, não importam na literatura. Ler é um jeito de relembrar a importância de todas as vidas.
A literatura, da cadeia criativa, produtiva, distributiva e mediadora do livro, pode contribuir para a redução das desigualdades ao se preocupar com cada existência. Quando Alicia Garza afirma que “Vidas negras importam” e o movimento de jovens baianos sai às ruas gritando “Reaja ou será morto, reaja ou será morta!” os(as) ativistas do livro e da leitura das bibliotecas comunitárias, se perguntaram: “Como reagiremos ao genocídio dos nossos jovens?” Uma das respostas foram os clubes de leitura a partir do livro #Parem de Nos Matar da escritora Cidinha da Silva que traz crônicas sobre as mortes “cotidiárias” (muito mais que cotidianas), físicas e simbólicas, de jovens negros(as). A literatura tem sido um meio de enfrentar as necropolíticas. Para não morrer, seguimos sendo parteiras de boas histórias. Gerando vida.
É um jeito de resistir e de gerar vida, conhecer e divulgar as obras e os(as) autores(as) dos nossos territórios. Conhecer e preservar as memórias, nomes e dignidade dos(as) que vieram antes de nós, se expressaram pela escrita, foram reconhecidos por leitores(as), mas não entraram no cânone literário ou só entram agora por nossos esforços como Carolina Maria de Jesus, é uma forma de (re)existência.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi uma autora brasileira, reconhecida apenas recentemente, como uma das mais destacadas escritoras negras do País, embora seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960)tenha se tornado um best seller ao ser traduzido para 16 idiomas e vendido cerca de 10 mil cópias em 40 países. Carolina, que foi catadora de papel, em vida lutou para ser respeitada como escritora. Publicou outros livros: “Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-favelada” (1961), “Pedaços da Fome” (1963) e “Provérbios” (1965), além de publicações póstumas como Diário de Bitita e Onde estaes felicidade? Carolina faleceu em Parelheiros (SP), região em que está localizada a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura.
Ler autores(as) esquecidos(as) é devolver-lhes a vida literária que lhes foi sequestrada. É recoloca-los(as) em nossa família literária. É reconstruí-las. É dar-nos o direito de reinventar a nossa existência, nossas histórias e memórias. É construir um futuro que se contraponha às estatísticas de morte. É garantir mais vida na literatura, ao disseminar o Direito Humano de existir biológica, cultural, estética e politicamente. Literalmente. A defesa do Direito Humano à Literatura, é a defesa do Direito Humano à Diversidade e às Identidades sem ameaça à Humanidade. Acreditamos que o acesso à literatura pode contribuir para o projeto de humanização da sociedade. Boas histórias, histórias bem contadas, podem ser aliadas em nosso projeto de existência. Podem contribuir para que cada um de nós possa se ver no que lê. Talvez, nós das bibliotecas comunitárias, presentes até em um cemitério, tenhamos encontrado um elixir da vida eterna: ler, ler, ler. Ler muito. E conversar sobre o lido.
Bel Santos Mayer é educadora social, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC, co-gestora da Rede LiteraSampa, formadora de jovens mediadores de leitura, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Turismo (EACH/USP), pesquisando a contribuição das bibliotecas comunitárias para o estudo das mobilidades.
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Sempre maravilhoso ler e ouvir a Bel, essa grande mestra da vida de tantas e tantos que constroem diariamente as histórias das bibliotecas comunitárias nas periferias desse Brasil!
Juntos somos mais fortes e vamos sim, construindo outras histórias: pelas bordas, as brechas e os vaos… Aos poucos vamos enterrando esses nãos e construindo narrativas de afirmação da vida, de justiça, liberdade e emancipação humana pq, como diz um outro mestre, Manoel de Barros: “quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras – liberdade caça jeito.”
Que tudo se movimente!!!