​​​ ​Do outro lado de lá, aqui: História do Islã, herança e islamofobia ​​​

O mundo islâmico está constantemente nas manchetes. Desde o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão até a guerra civil no Sudão e o nivelamento da Palestina, as imagens de violência e atraso parecem marcar essas sociedades, seja na África, seja no Oriente Médio. No entanto, essas visões são simplistas e desconsideram a complexidade do Islã. Desde o 11 de setembro de 2001, que serviu de justificativa para a invasão dos Estados Unidos ao Iraque, o ódio contra muçulmanos — isto é, seguidores do Islã — aumentou, apoiado por estereótipos criados na Idade Média e reforçados pelo orientalismo. 

O orientalismo, conceito desenvolvido pelo teórico Edward Said, descreve o imaginário construído pelo Ocidente sobre o mundo islâmico, associando-o à intolerância e a uma sensualidade exótica. Essa visão ganhou força com a colonização do mundo pela Europa entre os séculos XIX e XX. Na atualidade, a islamofobia — preconceito contra o Islã e contra os muçulmanos — ainda se apoia no orientalismo e, no Brasil, reflete-se em estereótipos de que os homens muçulmanos são rígidos e violentos, por um lado, e de que as mulheres muçulmanas são submissas, por outro. Essas ideias estão em desacordo com os próprios ensinamentos islâmicos, que promovem a gentileza e o rompimento com práticas culturais prejudiciais. 

Apesar do preconceito, o Islã é, atualmente, a religião que mais cresce no mundo. Segundo o Pew Research Center, cerca de dois bilhões de pessoas consideravam-se muçulmanas em 2020, representando quase 25% da população mundial. Apesar disso, é muito comum relegarmos o Islã “àquelas partes de lá”, como se falássemos de um fenômeno que não nos diz respeito. Embora, no Brasil, o número de muçulmanos seja baixo (menos de 1% dos brasileiros são muçulmanos, conforme o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estátistica — IBGE — de 2010), nossa sociedade conta com um importante legado islâmico. 

Desde que foi fundado, na Península Arábica do século VII, o Islã espalhou-se pelo globo: primeiro para a África, depois para a Ásia, para a Europa e, finalmente, para as Américas. Segundo a tradição islâmica, tudo começou com um comando — “Leia!” ou “Recite!” — transmitido de Deus, por intermédio do anjo Gabriel, a Maomé (ou em árabe, Muhammad). As revelações que se seguiram, marcando um período de cerca de trinta anos da vida do profeta, conformam o Alcorão. Embora o Islã tenha bases coesas, ele foi adaptado por diferentes culturas e é considerado uma mensagem universal. Na verdade, em Sua revelação, Deus é enfático: “E este (Alcorão) não é mais do que uma mensagem para todo o universo” (68:52). 

O Islã não é, portanto, uma religião exclusivamente árabe. Aqueles mais familiarizados com a história do Brasil certamente se lembrarão da Revolta dos Malês, muçulmanos africanos escravizados que sacodiram a Bahia durante o ramadão — mês sagrado do calendário islâmico em que os muçulmanos resguardam o jejum — de 1835. O acontecimento ilustra que, em primeiro lugar, o Islã se encontra mais próximo de nós do que pensamos e, em segundo, de que a religião já estava suficientemente desenvolvida na África para fundamentar a coesão de comunidades em diáspora e fornecer-lhes uma visão de mundo política aqui, do outro lado do Atlântico. Além disso, é interessante observar que os malês não foram os únicos muçulmanos africanos a estabelecerem-se no Brasil: havia importantes comunidades no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro e alhures. 

Na África, a presença do Islã é tão antiga quanto a própria religião. No século VII, Maomé orientou seus seguidores a buscar proteção com o rei cristão de Aksum, na atual Etiópia, por causa das perseguições em Meca. Nesse mesmo século, o Islã se firmou no norte da África e logo cruzou o deserto do Saara. No século X, a presença de muçulmanos em terras subsaarianas, sobretudo na condição de mercadores, está bem documentada. Desde então, a religião criou raízes no continente. Estudos recentes mostram como a promoção do Islã na África Ocidental — que inclui países como a Guiné-Bissau, o Mali e o Senegal — deveu-se não a “guerras santas”, mas a um processo gradual e pacífico de transmissão de conhecimentos islâmicos por meio de escolas corânicas, locais dedicados ao ensinamento do Alcorão que formaram muitos intelectuais e santos muçulmanos africanos, como o xeque Amadou Bamba, que liderou um movimento pacífico de resistência à colonização francesa do Senegal no início do século XX. 

Não há, aqui, uma contradição entre ser africano e ser muçulmano. Com o colonialismo, administradores e observadores europeus procuraram estabelecer uma distinção entre o Islã praticado na África do Norte e no Oriente Médio, de um lado, e o Islã praticado por sociedades africanas negras, do outro. O Islã médio-oriental, majoritariamente árabe, conformaria, em sua concepção, uma tradição religiosa “central”, mais pura e, por isso mesmo, mais violenta. O Islã negro, por sua vez, seria um Islã caracteristicamente periférico, sincrético e, por isso mesmo, mais domesticável. Essa divisão, que reforça preconceitos tanto sobre as sociedades da África do Norte e do Oriente Médio quanto sobre aquelas da África ao sul do Saara, adquiriu, no século XX, uma fundamentação científica. Se o conhecimento histórico se voltou para as sociedades letradas do Mediterrâneo, a antropologia se responsabilizou pelas sociedades largamente orais do restante do continente. As sociedades muçulmanas subsaarianas encontraram-se no centro de uma lacuna do conhecimento que apenas recentemente vem sendo preenchida. 

Ao mesmo tempo, a divisão entre um Islã central e um Islã negro continua impactando-nos hoje. Não são raras as vezes em que comunidades muçulmanas negras têm a legitimidade de sua fé questionada, mesmo por outros muçulmanos, como se não passassem de meros “islamizados”… O importante é recordar que o Islã vivido no Gâmbia e em Moçambique não é nem mais, nem menos sincrético do que aquele vivido no Marrocos ou no Irã. Em um como no outro caso, a religião islâmica não existe em um vácuo, mas interage, continuamente, com as tradições culturais e religiosas existentes em cada localidade. 

Foi esse Islã, encarnado por africanos, o primeiro a chegar ao Brasil. Aqui, essa tradição islâmica africana perdurou pelo menos até o início do século XX, manifestando-se em celebrações às escuras em casas de particulares. A imigração árabe, em particular a de sírios e de libaneses, para nosso país é um fenômeno mais recente, iniciado na segunda metade do século XIX, no momento em que o Império Otomano experimentava um processo de modernização. Atualmente, a maioria dos muçulmanos brasileiros é formada pelos descendentes dos imigrantes árabes do século passado, mas o Islã vem crescendo, também, entre brasileiros não árabes convertidos em grande medida em decorrência do acesso à informação facilitado pela internet e dos esforços missionários patrocinados por países como a Arábia Saudita e o Egito. 

No Brasil, muçulmanos enfrentam diferentes formas de preconceito, dependendo de sua classe social, gênero e raça. Muçulmanos árabes, geralmente vistos como brancos e de classe média ou alta, sofrem menos discriminação. Em contrapartida, as muçulmanas enfrentam violência e sexualização, enquanto muçulmanos negros e refugiados africanos são vítimas de islamofobia, racismo e xenofobia, sendo associados ao crime e ao terrorismo. O uso de vestimentas religiosas causa hostilidade, com xingamentos nas ruas, e a prática religiosa também enfrenta dificuldades: as cinco orações diárias, um dos pilares do Islã, são complicadas pela falta de locais adequados. 

O Islã é detentor de uma história intricada e profunda no Brasil, que não se limita às comunidades árabes imigrantes do século XIX, mas remonta, antes, ao legado africano trazido pelos escravizados. Ao estudá-la, damo-nos conta de uma contribuição muitas vezes desconhecida dessa tradição religiosa para a formação do país. Conhecendo-a melhor, é possível combater preconceitos e reconhecer o Islã não como uma religião estrangeira, mas como parte integrante da herança cultural brasileira. 

Referencias Bibliográficas:

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GARCIA, L. A presença do Islã no/do Brasil. Latin America & Caribbean Islamic Studies Newsletter, v. 2, n. 1, p. 2-10, out. 2021. 

BARBOSA, F. (coord.) I relatório de islamofobia no Brasil. São Bernardo do Campo: Ambigrama, 2022. 

PEW RESEARCH CENTER. The future of the global Muslim population. Pew Research Center, 2011. Disponível em: https://www.pewresearch.org/religion/2011/01/27/the-future-of-the-global-muslim-population/. Acesso em: 9 nov. 2024. 

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BABOU, C. Fighting the greater jihad. Athens, Ohio: Ohio University Press, 2007. 

SALVAING, B. Islam in Sub-Saharan Africa, 800-1900. In: NGOM, F.; KURFI, M.; FALOLA, T. The Palgrave handbook of Islam in Africa. Cham: Palgrave Macmillan, 2020. 

WARE III, R. The walking Qur’an. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2014. 

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TRIAUD, J.-L. “Giving a name to Islam south of the Sahara”. The Journal of African History, vol. 55, n. 1, p. 3-15, mar. 2014. 

MOTA, T. Muslims, Moriscos, and Arabic-Speaking Migrants in the New World. Latin American Research Review, v. 55, n. 4, p. 820-828, dez. 2020. 


Lucas Oliveira Ribeiro

Lucas Oliveira Ribeiro, muçulmano, é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais. Seus interesses incluem a história ambiental e econômica da África Ocidental e a história das sociedades islâmicas ao redor do mundo. Preocupa-se, sobretudo, com a relação entre o comércio de goma-arábica e o desenvolvimento socioeconômico do vale do rio Senegal durante o século XIX.


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