Um dos temas essenciais para o estudo da História do Brasil é o período da escravidão. Durante o percurso de escolarização, os estudantes são normalmente expostos a discussões sobre este sistema, estudando sobre os engenhos de cana-de-açúcar no nordeste do Brasil, a casa grande, a senzala, planteis com números muito grandes de pessoas escravizadas, entre outros aspectos.  Estudamos também sobre a produção de café no sudeste, que aconteceu principalmente no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo, onde a mão de obra escravizada foi, para a sustentação do comércio internacional do país e o enriquecimento de pessoas. 

Em relação às pessoas que estavam sendo exploradas, em alguns casos estudamos que elas eram vítimas da violência às quais estavam expostas, sendo violentadas, apagadas, obrigadas a negar sua cultura e desumanizadas. Quando estas pessoas resistiam, optavam por formar quilombos (comunidades onde a escravização e a exploração não existia) e sabotar a produção. Mas depois da abolição, a contribuição dessas pessoas gradativamente desaparece da narrativa histórica, voltando a ser mencionada em situações pontuais. Como se não tivessem ajudado a construir o país ao qual você pisa hoje. 

Este geralmente é o caminho percorrido para se ensinar a história da escravização, ou a forma trabalhadas em artefatos culturais, como filmes, séries ou novelas. Porém, acredito ser importante considerar que um sistema tão longínquo e presente na realidade brasileira não poderia ter características tão simplificadas na sociedade, não acha? Um sistema que envolveu pessoas, tanto como exploradores, quanto como exploradas, não poderia ser estanque e igualmente reproduzido em todos os lugares de norte a sul do país, você concorda? 

A minha função aqui, é a de incitar a pensar de forma um pouco mais aprofundada nas relações escravistas que ocorreram no Brasil, percebendo que tal sistema pode ter acontecido muito mais perto de você do que se imagina. 

“(…) a propriedade sobre escravos não se limitava a grandes senhores de engenho, fazendeiros e mineradores. Tanto no campo como na cidade era grande o número de pequenos escravistas, donos de um, dois ou três escravos, trabalhadores na pequena lavoura, nos serviços de rua ou de casa. Por todas essas características, os escravos marcaram em profundidade os costumes, o imaginário, a cultura e até, através de uma intensa miscigenação, o próprio perfil étnico racial de nossa população” (Reis, 1998). 

Podemos perceber nesta citação do historiador João José Reis, que o sistema escravista tinha uma característica de se organizar para além das grandes fazendas ou das empresas mineradoras. A escravização ocorrida teve um caráter corriqueiro, presente no cotidiano das cidades que se formavam (como Juiz de Fora) e daquelas já estabelecidas desde o período colonial (como Salvador ou o Rio de Janeiro). 

O lugar do qual escrevo é a cidade de Juiz de Fora, no interior de Minas Gerais. Por mais que eu soubesse que esta cidade também tenha tido participação ativa no sistema escravista, quando me propus a pesquisar com mais profundidade este tema, consegui perceber concretamente, a partir de indicações teórico-metodológicas, as  dimensões que a escravização juizforana tomou. Por exemplo: 

“A presença escravizada na consolidação urbana de Juiz de Fora foi fundamental. Oliveira aponta o dado que entre 1833 e 1835, este grupo representava cerca de 60% da população habitante desta região (OLIVEIRA, 2009, p. 70). O braço servil, para o autor, foi imprescindível para o desmantelamento e as movimentações de terras para a construção do trecho da Estrada do Paraibuna. A inserção deste tipo de mão de obra foi tão difundida na região, que há registros atuação de escravizados até mesmo junto a Câmara Municipal nos serviços de capina, limpeza rotineira das ruas centrais e fornecimento de água e assento da cadeia. Além do poder público, companhias privadas também se valeram da utilização deste grupo visando ampliar seus lucros e contornar dificuldades em contratar trabalhadores livres (OLIVEIRA, 2009, p. 73).” (Ferreira, 2023) 

Ou seja, a presença da escravização foi algo tão difundido que até mesmo prestar serviços para a Câmara Municipal da cidade tem indicações de pessoas escravizadas realizando tal trabalho. Algo de se imaginar, considerando quem realizava o trabalho servil no período, mas que toma outra dimensão quando pesquisas demonstram por meio das fontes tal fato. 

“Assim, afirma-se que o trabalho dos escravizados não foi importante somente da produção de café e outros gêneros agrícolas em Juiz de Fora, como fundamental para a viabilização regional de transportes, da constituição da expansão da malha urbana do distrito-sede do município e para desenvolvimento de diversas atividades no interior da região (OLIVEIRA, 2009, p. 69).” (Ferreira, 2023). 

O objetivo deste texto não é discutir profundamente as marcas que o sistema escravista deixou para a cidade de Juiz de Fora ou de qualquer outra localidade. Porém, se concentra em promover a reflexão sobre aquilo que hoje algumas instituições e conferências internacionais consideram crime contra a humanidade (a exemplo da ONU e a Conferência de Durban em 2001). Logo, esse crime pode ter acontecido muito mais próximo de você do que se imagina. 

Como é possível sentir atualmente a presença do sistema escravista na sua cidade? Quais os prováveis resquícios deixados por este sistema atualmente? Existe alguma política de memória para trabalhar com este passado ou é um tema completamente ignorado no seu dia a dia? Você tem costume de distanciar este sistema da sua realidade? Por quê? É difícil imaginar que  um sistema tão cruel de desumanização e enriquecimento a partir do trabalho forçado de outras pessoas tenha acontecido nas ruas que você caminha hoje em dia? 

São apenas algumas das perguntas que eu me fiz quando me deparei com esta realidade, acredito que a sociedade também deva se questionar e a partir disso, agir. 

REFERÊNCIAS

— Ferreira, Luan P. C. “Mas, professora, o segurança e o policial são negros também!”: narrativas docentes sobre o tema da escravização no Ensino de História em Juiz de Fora–MG. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 108p. 2023.  

— REIS, João José… In: MOTA, Carlos Guilherme. Tiradentes e a inconfidência mineira. São Paulo: Ática, 1998. P. 245.


Luan Pedretti de Castro Ferreira 

é doutorando pelo Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora e professor de História da Educação Básica. Tem interesse em discussões relativas ao Ensino de História, educação não-formal, educação para as relações étnico-raciais, escravidão e memória. 


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