Chile 2019: Nosso Norte é o Sul

Nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul. Por isso agora pomos o mapa ao revés, e então já temos a exata idéia de nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, desde agora, prolongando-se, assinala insistentemente o Sul, nosso Norte.

Joaquin Torres García

Joaquin Torres García (1874-1949)

Se você não estava em outro planeta na última semana ou em algum retiro espiritual isolado da vida social em silêncio absoluto, deve saber, ao menos superficialmente, o que se passa no Chile. Caso não saiba, o que acontece é a maior manifestação política de massa desde a redemocratização do país.

Talvez o começo desta reação em cadeia tenha ocorrido no dia 07 de outubro, quando o presidente do Chile, Sebastian Piñera, (fazendo referência a crises políticas que eclodiram na América do Sul como no Equador, Venezuela, Bolívia e Brasil), disse em um programa de TV nacional, que “em meio a uma America Latina convulsionada, o Chile é um verdadeiro oásis, com uma democracia estável”.

Pois então, em menos de 15 dias, o próprio Presidente veio a público novamente para declarar: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém e está disposto a usar a violência e delinquência sem nenhum limite“.

Estranhamente, duas colocações tão antagônicas, dadas em tão curto espaço de tempo, revelam uma profunda e silenciosa crise que se passava nas alcovas da vida cotidiana do povo chileno.

Em 18/10, após o anúncio do aumento da passagem do metrô de 800 para 830 pesos, o povo chileno foi em massa para as ruas em protesto. Como em junho de 2013 no Brasil, os chilenos transbordaram-se de revolta e deram início ao que já é considerada a maior manifestação da história do país após o retorno à democracia.

Cabe ressaltar que não venho aqui com qualquer pretensão de fazer análises políticas ou sociais, tampouco trazer uma informação atual e apurada como fonte jornalística para informar os leitores. No entanto, creio que algumas reflexões são propícias neste momento. Digamos que seja “a deixa” que eu estava esperando.

A história da América Latina, terra colonizada pelos Europeus, nos mostra que a exploração do continente foi de fato conduzida por terríveis derramamentos de sangue, sobretudo indígena e negro. Desde Incas, Maias e Astecas aos povos indígenas brasileiros e negros escravizados, a lógica de dominação se baseava na supressão violenta para a colonização do continente.

Em 1971, no livro: Las venas abiertas de América Latina (As veias abertas da América Latina) do uruguaio Eduardo Galeano, encontramos uma análise dessa história da América Latina desde o período da colonização europeia até a Idade Contemporânea. No texto, Galeano argumenta contra a exploração econômica e a dominação política do continente pelos europeus e seus descendentes, e aponta, uma dominação imperialista exercida pelos Estados Unidos na atualidade, tanto política como culturalmente. Uma espécie de capitania Hereditária Cultural.

O fato é que os desdobramentos políticos e culturais deste processo, são percebidos em uma realidade social oprimida pela mentalidade colonizada. E é por este motivo que a América Latina é rica em revoluções e manifestações de resistência.

Além da opressão colonial exercida pela violência, a imposição de costumes e conjunto de crenças Européias tornava a condição do colonizado ainda mais coagida. No caso do Chile, de acordo com o livro: A History of Chile (1941), de Luis Galdames, após a colonização liderada por Pedro de Valdívia, conquistador espanhol fundador de Santiago, a colônia era organizada quase de forma teocrática:

Political and ecclesiastical authority in Chile were almost the same, because the king made them both serve the ends of his government. The union of both powers originated in the first place in the belief that the powers of kings proceeded from god; and, in the second place, from the authorization that the pope gave the sovereigns of Spain to determine the ecclesiastical dignitaries of the new continent – an authorization that was equivalent to naming them, know as the rigth of patronage (derecho de patronato). (GALDAMES, 1941)

*Em tradução livre:
A autoridade política e eclesiástica no Chile era quase a mesma, porque o rei os fez servir aos fins de seu governo. A união de ambos os poderes se originou em primeiro lugar na crença de que os poderes dos reis procediam de Deus; e, em segundo lugar, da autorização que o Papa concedeu aos soberanos da Espanha para determinar os dignitários eclesiásticos do novo continente – uma autorização equivalente a nomeá-los, conhecida como o direito do patronato (derecho de patronato).

Por esse motivo, o rolo compressor europeu, que fragmentava crenças, costumes e subordinava o nativo ao trabalho escravo, à condição de não-humano, adicionou séculos de ódio e revolta silenciosos à um tecido social que encontrava no sofrimento um ponto de mobilização e resistência.

Sendo assim, desde Símon Bolívar (1783-1830) a Ernesto Guevara (1928-1967), Fidel Castro (1926-2016) e Hugo Chaves (1954-2013), a semente da luta contra a opressão colonial e a busca por uma identidade social e política que reflita a cultura latino-americana em sua dimensão mais sensível e verdadeira é a tônica das revoluções e contra-revoluções no continente. Apesar de golpes políticos que impõe governos militarizados autoritários e mobilizações populares que se opõe à esses movimentos fazerem parte de uma realidade frequente no mundo, nos países das Américas, podemos notar uma assiduidade considerável.

Sendo assim, o que ocorre no Chile hoje é apenas mais um capítulo da história de uma povo que representa, em sua luta e resistência, a voz de quem sofreu com o devastador processo da colonização.

Ademais de argumentações político-partidárias, o desassossego da estabilidade política na América do Sul é a manifestação lasciva de que a herança violenta da colonização não pode ser negociada, e as tentativas recentes de neoliberalizar a economia, não garantem a parte que nos foi tomada neste processo. Pelo contrário: é um impetuoso golpe contra nossa luta por liberdade.

Eugène Delacroix – Le 28 Juillet. La Liberté guidant le peuple. 1830 

Frederico Lopes é Artista e gostaria de ser Escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco e é fundador da Bodoque Artes e ofícios.


Clique na imagem e acesse a loja virtual da Bodoque!


Galeria

Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *