Encerrada após três temporadas, a série da HBO tratou de pornografia, prostituição, máfia, corrupção policial e gentrificação na Nova York dos anos 70 e 80.
É 1971 e uma moça acaba de chegar a Nova York, vinda do Minnesotta. Inocente e perdida, ela é atraída por um homem negro, bonito e de roupas visivelmente caras, que lhe oferece as promessas exatas que uma jovem vinda de tão longe precisa. Ela não sabe, mas aquele homem é um cafetão e no momento em que a viu pela primeira vez apostou com um amigo que a transformaria numa de suas prostitutas. E pelos anos seguintes é quem ela será.
Essa cena, presente no primeiro episódio de The Deuce, dá a tônica do que vai tratar a série, que através de três temporadas e 25 episódios cobriu um período de quase 15 anos de Nova York, debruçando-se sobre uma região específica da cidade. O “Deuce” do título se refere a um pedaço da 42ª Street, entre a Sétima e Oitava Avenidas, que nos anos 70 e 80 era um famoso antro de prostituição, corrupção policial e negócios gerenciados pela máfia. Muito longe da imagem gloriosa que a cidade hoje apresenta, e conforme a série vai avançando no tempo também vai mostrando a gradual transformação desta cidade decadente em um paraíso turístico que, no entanto, prefere ignorar seu “sujo” passado e não hesitou em varrer essa sujeira para debaixo do tapete como se ela nunca tivesse existido.
The Deuce foi criada por David Simon e George Pelecanos, responsáveis por uma das séries mais aclamadas de todos os tempos: The Wire. Tanto nesta quanto em sua outra criação televisiva, Treme, Simon e Pelecanos apresentaram algumas de suas marcas que também são evidentes em The Deuce: um trabalho com um elenco multirracial e múltiplas tramas cirurgicamente trabalhadas para compor um painel maior, bem como uma perspectiva fortemente calcada no realismo (e que encontra ecos no trabalho anterior de Simon como jornalista em Baltimore). Assim, embora The Deuce empregue um nítido protagonismo aos personagens dos atores James Franco (os gêmeos Vincent e Frank Martino) e Maggie Gyllenhall (Eileen “Candy” Merrell), todo o elenco consegue se sobressair em diversos momentos, à medida que estas várias histórias vão sendo contadas, ora se interligando, ora meramente tangenciando ou apenas correndo paralelamente umas com as outras. Mas é inegável o cenário que vai sendo montado a partir da conjugação de todas elas.
É inegável, porém, que a série debruça seu olhar principalmente sobre a prostituição e sua ligação direta com a ascensão do mercado pornográfico, que se converte numa indústria multimilionária no decorrer das temporadas. Dos filmes de baixo orçamento produzidos no Deuce para as “superproduções” em Los Angeles – e com várias das prostitutas migrando para a carreira de atrizes – a série fornece um estudo rico e realista de que em ambos os espaços, a vida das mulheres não têm valor do mesmo jeito. Objetificadas, violentadas, submetidas a condições humilhantes, elas só encontram alguma força umas nas outras, visto que em casos como o de Lori Madison (Emily Meade), a jovem que escrevi no primeiro parágrafo, sua transição da vida de prostituta para atriz pornô consiste quase que apenas em trocar seu cafetão por um agente que se comporta como um cafetão, vendendo-a aos melhores produtores do mercado.
O olhar jornalístico de Simon permite que esses temas, por mais cruéis e pérfidos que sejam, nunca sejam olhados de forma unilateral, com diferentes visões e opiniões percorrendo a série. Isso, contudo, não implica numa falta de posicionamento por parte dela, nem que a humanização dos personagens (capazes de atitudes louváveis e também dos atos mais cruéis e violentos possíveis) significa uma glorificação do passado decadente de Nova York. Prova disso é na derradeira temporada, que se move para os meados dos anos 80 e trabalha, dentre os seus vários temas, a epidemia de AIDS e a correlação desta tanto com a indústria pornográfica quanto com os preconceitos dirigidos à população LGBTQ+. E traz à tona subtramas como a dos movimentos feministas que contestam e atacam a pornografia, resultando numa impactante cena em que Candy – agora uma prestigiada atriz e diretora pornô – e Abby Parker (Margarita Levieva), namorada de Vincent, são levadas por Loretta (Sepideh Moafi), outrora prostituta e que agora é uma militante, para uma reunião com outras militantes, e estas expõem duramente os impactos físicos e psicológicos nas mulheres envolvidas nessa indústria. Isso sem contar o destino trágico que acomete vários dos personagens principais, seja no contexto da própria AIDS e sua disseminação como no da violência ligada ao crime – este retratado como profundamente entranhado nas raízes da prostituição e pornografia.
Apesar do tom sombrio de sua última temporada e das perdas dolorosas de personagens tão importantes – uma em particular, no penúltimo episódio, tem um dos adeus mais trágicos dentre todas as séries que eu já assisti – The Deuce ainda consegue oferecer um olhar nostálgico (mas novamente, não glorificador), quando em um epílogo agridoce mostra um de seus personagens chegando aos dias de hoje e visitando os locais do passado – agora transformados na Nova York moderna e paradisíaca – bem como os fantasmas de amigos e companheiros que ficaram pelo caminho. É um encerramento melancólico, mas surpreendentemente bonito, para uma série que nunca se furtou em apontar o dedo para uma realidade que a cidade mais importante do mundo tenta esconder. Mas no cerne de tantas temáticas pesadas e que escancaram uma verdade que muitos de nós não assumimos ou nos responsabilizamos (especialmente se/quando já consumimos de alguma forma a pornografia), está uma obra que mais do que tudo se preocupou em desenvolver seus personagens, os quais, ainda que retratando um passado que em muitos aspectos já não existe há muito tempo, não se permitiram ser esquecidos mesmo quando deixaram de existir de maneiras tão dolorosas. The Deuce é, talvez mais do que todos os temas que trabalhou, uma série sobre memória. E como canta Debbie Harry em Dreaming, a canção do Blondie que marca os créditos da última temporada:
Eu me encosto e vejo a correnteza
Eu me encosto e vejo o tráfego fluir
Imagine algo muito pessoal
Algo que você possa ter e manter
Eu construí uma estrada de ouro
Só pra ter alguns sonhos
Sonhar é de graça
Sonhar
Sonhar é de graça
Vinícius Oliveira Rocha é um paulista de nascimento e baiano de coração que atualmente reside em Aracaju-SE, onde faz graduação em Jornalismo. É aficionado por cinema, música, literatura, TV, cultura pop e mobilidade urbana, e autor do livro de fantasia infanto-juvenil “O Destruidor de Mundos”.
Clique na imagem acima e acesse a Loja Virtual da Bodoque!
Galeria
Apoie tradições populares. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.