Nas duas últimas semanas, presenciamos dois bárbaros ataques aos povos indígenas latinoamericanos, um eles no Brasil. O líder ambientalista e defensor dos povos indígenas Pedro Guajajara foi morto no Maranhão, por líderes garimpeiros que encontram legitimidade e proteção no atual Governo brasileiro. Uma semana depois, o único nativo a governar um país neste continente de origem indígena, o presidente boliviano Evo Morales, foi deposto do cargo ao qual foi eleito ainda este mês, num golpe de Estado que ganha contornos de barbárie.
Tais fatos e outros tantos evidenciam o quanto a população colonizadora, ainda que não responsável pela herança das invasões do século XVI, não consegue lidar com a realidade de que os donos desta terra são os povos nativos e, se hoje é impossível restituí-la, ao menos se deve garantir sua segurança social, territorial e cultural, além de efetiva participação nas tomadas de decisão do Poder Público. Quando abrem canais de articulação, estes são obstruídos ou perseguidos, conforme ensina o caso boliviano. E de acordo com o caso brasileiro, a busca da integridade territorial tem por consequência a ameaça à vida.
Entre recuos e massacres vivem os povos indígenas latinoamericanos há 500 anos, desde que as invasões europeias trouxeram os colonizadores, Tomé de Sousa, Francisco Pizarro, Hernán Cortez os mais conhecidos. E seria fácil evocar Eduardo Galeano para evidenciar o quão violada foi a América Latina e, consequentemente, seus povos indígenas. Inclusive, nas páginas de sua obra magna “As veias abertas da América Latina”, Galeano descreve o quanto a Bolívia teve toda sua prata e ouro subtraídos em cidades como Potosí e Cochabamba (de onde vem Evo Morales), para transformarem-se hoje em pobres cidades dependentes do extrativismo vegetal.
Entretanto, como é proposta desta coluna discutir os problemas sociais à luz de antigas lições manifestas em linguagens acessíveis, hoje vamos falar de cinema. A cinebiografia Joaquim, de Marcelo Gomes, conta a história de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, não do ponto de vista do membro da Conjuração Mineira que foi morto pelos portugueses ao ser o único elemento popular num grupo de fidalgos rebeldes. O filme narra a trajetória do alferes Joaquim, antes de conhecer o movimento de revolta contra a metrópole. Durante a narrativa, ele recebe a ordem de realizar uma expedição no interior de Minas conhecido como “sertão proibido”, cujos perigos indispunham o avanço ou exploração pelos colonos. O objetivo é encontrar minas de esmeraldas.
Joaquim leva consigo, além de outros soldados, um negro, escravo, e um índio, cativo. O escravo é o mais apto ao trabalho pesado, acostumado nas fazendas. O índio, dono das terras, as conhece e sabe seus caminhos e perigos. Entretanto, entre todos no grupo, os dois são aqueles maltratados e postos de lado quando em momento de descanso. Em cena emblemática, que deveria constar nos almanaques do cinema nacional, enquanto o grupo de brancos dorme depois de celebrar e se embriagar após a presunção de descoberta de uma mina, o negro e o índio iniciam, a princípio distantes e cada um a sua maneira, cantos de lamentação pelo sofrimento e a terra perdida. Ao perceberem um ao outro, juntam-se e completam-se numa melancólica e marcante melodia.
Numa terra de escravos e indígenas, poucas iniciativas reais existiram para que fique no passado a melancolia dos cantos africanos e indígenas, que determinaram o canto triste e as letras repletas de lamento de muitos sambas de raiz e enredo, muitos dos quais honram a cultura e a resistência também dos povos indígenas. Em nossa história, dois momentos de contato respeitoso e conservacionista foram realizados, um no ínicio do século XX com as expedições do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon para mapeamento da Amazônia, outro na década de 1960 com as expedições os irmãos Villas Boas para a fundação do Parque Indígena do Xingu (hoje ameaçado).
Lidar de forma cidadã com os nossos indígenas e permitir-lhes participação social, àqueles que desejam integrar-se total ou parcialmente à organização social majoritária, é parte sensível para a quebra dos paradigmas lastreados no ódio às diferenças vistos hoje no continente. Se, no Brasil urbano, onde está concentrada a ampla maioria da população brasileira, o ódio ao indígena não é percebido, no rural ele provoca morte aos índios e aos seus defensores. E, num breve olhar para os nossos vizinhos, percebe-se que a chaga do ódio ao indígena se vê latente e irmanada com o ódio aos pobres, o que ocorre agora na Bolívia.
Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para os jornais Brasil 247 e El Siglo de Chile. Foi correspondente internacional na China em 2019.
Galeria
Apoie tradições populares. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.