Em 1996 ganhei meu primeiro videogame, um Super Nintendo usado que acompanhava apenas um game, Super Mario Bros 3. Todos os sábados ia até a locadora mais próxima e alugava um jogo para entregar na segunda – sem atrasos, de preferência. A frequência das locações era acompanhada das máximas como, “esse videogame vai queimar a televisão”, “a televisão está perdendo a cor por causa desse videogame”, “desliga esse jogo que eu quero ver o jornal”. No início dos anos 2000 fui presenteado com um novo console, o Playstation One. O revolucionário videogame, que trazia como novidade o uso de CD’s ao invés de cartuchos, dominou com folga o mercado brasileiro, impulsionado principalmente pelo mercado de jogos piratas, já que o console e seus jogos jamais chegaram a ser comercializado oficialmente por aqui. O console ficou no mercado até 2006, vendendo mais de 102 milhões de unidades, sendo elevado para o console mais vendido de todos os tempos até então. Jogos como GTA, Carmageddon, Doom, Duke Nukem logo se popularizaram, sendo destaques principalmente pela violência empregada e pelo palavreado considerado obsceno por muitos.
Essa discussão sobre a influência negativa dos jogos no Brasil era pequena, só ganharia novos ares com o lançamento do novo console da Sony, o Playstation Two. O PS2, como popularmente ficou conhecido, foi um dos primeiros, se não o primeiro, console a ter gráficos em alta definição, superando até mesmo as TVs da época em que foi lançado. Chegou ao Brasil apenas em 2008, com pelo menos oito anos de atraso. É claro que muitos fãs brasileiros já tinham o aparelho antes, graças ao chamado “mercado cinza” e às importadoras que traziam o console de fora do país. A partir de games como GTA: San Andreas, Mortal Kombat, God of War, Manhunt e Resident Evil a violência nos games se tornou assunto de grande destaque na mídia e para as próprias produtoras de jogos.
Ainda que possua uma história rápida se comparada com as outras mídias, os videogames têm enfrentado muitas críticas, “por meio das quais são apontados como um meio de estimular comportamentos agressivos e a violência nas crianças e nos jovens, que compõem, certamente, a imensa maioria de seus usuários” . De outro lado, há pesquisadores sérios e empenhados em compreender quais as faculdades dessa nova mídia que a tornam tão atraente. Nos últimos anos, porém, aumentou o interesse para a pesquisa dos aspectos positivos dos jogos, seus benefícios para os jogadores, potencialidades como recurso didático e uso na educação. Além disso,
os games trazem diversos benefícios ao jogador, como raciocínio lógico, maior tolerância em aprender a lidar com frustações, agilidade, interagir, socializar e se comunicar com outras pessoas, entre outras. Com isso, o game quando utilizado como um instrumento em sala de aula é capaz de proporcionar todos esses benefícios. Tais como: a) atividade de voluntária em que o jogador demonstra prazer; b) atividade livre, com liberdade de ação do jogador; c) caráter não sério de sua ação; d) separação do jogo dos fenômenos do cotidiano; e) limitação do tempo e espaço em que o jogo possui um caminho e um sentido próprio; f) existência de regras onde a menor desobediência estraga o jogo; g) caráter fictício .
São poucos os trabalhos na bibliografia brasileira que se comprometem a pensar as relações existentes entre a História e os videogames, e para tanto, é necessário que ocorra uma série de contemplações a partir das análises teóricas de diferentes autores. Como aponta Robson Bello, “falta também consenso na própria manifestação de vocabulário conceitual dentro do campo de estudos sobre videogame onde conceitos como ‘simulação’ e ‘representação’ são alvos de querelas acadêmicas” . É necessário que ocorra um diálogo e que se busque na interdisciplinaridade, no estudo de outras disciplinas e linguagens, tentativas de aproximação para compreendermos esse fenômeno.
Uma das preocupações dos professores que buscam abordar os games em suas aulas, é como adequar o conteúdo curricular ao jogo escolhido; quais serão as possibilidades de mediar processos de ensino e aprendizagem de História, por exemplo. Na abordagem de Helyon Viana e Lynn Alves, “um jogo histórico, é compreendido como um produto devidamente qualificado para desempenhar esse papel mediador” . É de se imaginar que a relação entre um tema histórico e os games não combinariam, uma vez que o raciocínio histórico deveria direcionar-se para produzir uma reconstituição precisa do passado, lastreada por fontes e documentos. Enquanto os jogos eletrônicos “são produzidos para atender às demandas de consumidores da indústria cultural que estão em busca de entretenimento […] onde a diversão e a jogabilidade são mais relevantes do que a aderência à precisão e a objetividade histórica” . Mas isso vem mudando.
Com os consoles recentes, como PS3, PS4 e Xbox One, a relação entre ficção e história tem ficado cada vez mais próxima e bem definida, com muitos estúdios de jogos contratando historiadores para auxiliá-los, como é o caso do jogo Assassin’s Creed: Unity, de 2014. O game se passa em Paris, durante a Revolução Francesa, e foi criado pela Ubisoft, desenvolvedora que contratou o historiador Laurent Turcot, um especialista na França do século XVIII. O trabalho de Laurent no jogo não estava diretamente relacionado ao roteiro, ele foi contratado para cuidar dos detalhes, os pormenores. A arquitetura, arte, cultura e comportamento. Coisas que, com o passar do tempo, foram transformadas em estereótipos e ideias errôneas. Segundo o historiador, “A cidade de Paris do século 18 não existe mais, e reconstruí-la do zero, a partir de arquivos, pinturas, gravuras era o meu trabalho. Mostrar toda essa cultura visual para os desenvolvedores. Criar uma forma de reproduzi-la. “
O trabalho final de Turcot ficou tão fantástico que, após o incêndio da Catedral de Notre Dame no início de 2019, o jogo Assassin’s Creed: Unity foi utilizado para a reconstrução da igreja, em Paris. O game recria com detalhes a famosa catedral, destruída parcialmente pelas chamas. No game, o protagonista explora a igreja por dentro, mas também é capaz de escalar suas paredes pelo lado de fora.
É notável como a saga Assassin’s Creed tem um excelente potencial para ser utilizado nas salas de aula, com vários assuntos podendo serem destacados, como o primeiro Assassin’s Creed que se passa na época das Cruzadas e nos mostra cidades como Jerusalém e Damasco; Assassin’s Creed: Syndicate se passa em uma Londres do século XVIII vivenciado todo os desenvolvimento da Primeira Revolução Industrial; Assassin’s Creed: Chronicles Russia se passa durante a Revolução Russa, evento que chocou a Europa e mudou a geopolítica global nas décadas seguintes; Assassin’s Creed: Origins se passa no Egito antigo e permite ao jogador escalar as pirâmides, a esfinge e compreende a importância do Rio Nilo para o povo egípcio; o último jogo lançado da série foi Assassin’s Creed: Odyssey, uma aventura épica na Grécia Antiga onde o jogador deve escolher o seu lado na Guerra do Peloponeso e explorar diversas cidades-estados, como Esparta e Atenas.
Recentemente foi anunciado o modo educacional do último jogo, intitulado Assassin’s Creed Odyssey, Discovery Tour, onde você poderá viajar e explorar as 29 regiões da Grécia antiga à vontade e fazer visitas guiadas com personagens históricos do jogo, como Heródoto, Leônidas, Sócrates, Pitágoras, entre outros. O modo oferecerá passeios em mais de 300 estações no jogo, cobrindo cinco campos: filosofia, cidades famosas, vida cotidiana, guerra e mitos. E, ao final de cada passeio, você responderá a um quiz que a Ubisoft descreveu como sendo “envolvente, divertido e gratificante”. Como em nossa sociedade os games estão presentes na realidade de muitas crianças e jovens, ações como essa da Ubisoft precisam ser consideradas pelos professores e professoras como um instrumento de prazer que também pode ser associado à ações de aprendizagem. A relação entre ensino e a cultura game, como defendem John Kirriemuir, Angela Mcfarlane “é capaz de indicar mudanças conceituais tanto sobre a aprendizagem quanto ao conhecimento produzido, levando necessariamente a reflexões sobre o papel dos jogos na construção de saberes das novas gerações” . Por isso, compreendemos os games como uma ferramenta valiosa para o processo de ensino-aprendizagem, que motiva e desperta o interesse de alunos e alunas, promovendo assim uma educação mais significativa.
Atualmente na educação, a introdução de tecnologias e de seus novos modos de ensinar e aprender vêm sendo abordadas com uma grande frequência nas escolas. Esses recursos tecnológicos digitais estão presentes em nosso dia a dia e nos permitem facilitações e oportunidades de aprendizagem, daí a importância de mediar e trazer para o ambiente escolar novos recursos que nos proporcionem conhecimentos diversificados.
Sendo assim, em agosto de 2019, desenvolvi o projeto HISTÓRIA & VIDEOGAME: COMO OS JOGOS DIGITAIS PODEM AUXILIAR NO ENSINO DE HISTÓRIA, objetivando estimular de forma não apenas crítica, mas também lúdica, a compreensão de diversos fatos históricos através de games eletrônicos. A ideia para o projeto surgiu após várias horas de gameplay de Assassin’s Creed: Odyssey, onde nas telas de loadings, informações históricas sobre a Grécia Antiga eram passadas. Algumas eu nunca havia lido ou ouvido nada sobre, daí, após pesquisar pela internet, descobri a participação de uma rede de historiadores na produção e roteiro do game que auxiliavam os programadores. Surgiu então a ideia de levar essas informações à sala de aula.
Considerando que a escola é um espaço de troca de conhecimento, de formação e informação, onde desempenha uma grande influência na vida do docente e dos alunos e alunas, procurei estimulá-los a pesquisar sobre jogos de videogame onde assuntos históricos fossem abordados.
No processo de aprendizagem histórica baseada em jogos eletrônicos apresentado no presente artigo, os resultados foram excelentes, pois foi possível perceber um aumento de interesse dos alunos e alunas que vinham perguntar onde podiam obter o game, que livro poderiam ler para saber mais sobre o assunto abordado no jogo, se haviam outros games com abordagem histórica. Trazer para a sala de aula uma tecnologia que, normalmente é ligada à diversão em casa com os amigos, foi altamente enriquecedor. Foi uma forma alternativa de diversificar as práticas pedagógicas no ambiente escolar e que podem ser utilizadas em outras turmas, tanto dos anos finais do Ensino Fundamental quanto do Ensino Médio. Como afirma Dayse Marinho, “o game como elemento presente no cotidiano do estudante pode aproximá-lo de uma realidade tão distante quanto o medievo favorecendo o entendimento desse contexto” .
Diogo Tomaz é professor e mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, ilustrador quando tem tempo e um amante da cultura geek.
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