A televisão ligada nos noticiários só sabia falar do processo de impeachment da presidente Dilma, cujo Congresso Nacional votava em massa naquele momento o prosseguimento ao impedimento dela. Márcia, recostada no sofá, com o pé direito sobre ele e tirando cutícula do dedo médio, revoltava-se vez ou outra diante das notícias proferidas naquele aparelho. Era professora de História. Dava aulas nas redes particular, estadual e municipal da cidade. Apesar do pouco salário diante de tamanha responsabilidade para a formação de seus alunos, adorava lecionar e instigar seus pupilos a refletirem sobre a vida e o mundo que os cercavam.
– Olha só, Gabriel! Presta atenção no que este boçal vai falar.
Gabriel, recostado na outra ponta do sofá, com seu filho ao meio e a cabeça em seu colo dormindo, fazia carinhos nele. Ao ser chamado pela esposa a prestar atenção à TV, saiu de sua contemplação paterna para observar o deputado Jair Bolsonaro proferir seu voto a favor do impeachment da presidente eleita.
– Neste dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história nesta data, da forma como conduziu o trabalho nesta Casa. Parabéns ao presidente Eduardo Cunha.
Olhou para a esposa, como que suspenso diante daquela fala. E prosseguiu prestando atenção à TV.
– Perderam em 64, perderam agora em 2016; pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve; contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Folha de S. Paulo; pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – o pavor de Dilma Rousseff –, pelo exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pro Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim.
Gabriel desferiu um novo olhar para Márcia, dessa vez espantado e aterrorizado com o que acabara de ouvir. Não acreditava que aquele homem tivera a sandice de enobrecer alguém que torturava pessoas, infligindo sofrimento a tantas famílias vítimas dele.
– E você acredita que o Paulo é a favor desse Bolsonaro? Sim! Ele diz isso sempre que pode, com todas as letras garrafais possíveis e imagináveis.
– Credo, Gabriel! Não é possível! O Paulo?
– Pois é! A maioria do pessoal sai matando em cima dele quando o ouve dizer esse tipo de asneira. Mas ele se mantém ali, fiel ao seu princípio.
– Não sei que princípio ele pode enxergar nisso. Bom, vou pegar o Ricardinho e levar pra dormir. E também vou deitar, amanhã será um dia daqueles.
Levantou-se, pegou o filho do colo do marido e saiu da sala, dizendo a Gabriel pra não demorar a ir deitar. Na sequência, ele desligou a TV, levantou-se, foi a uma prateleira da estante onde fica um pote de cerâmica com boca larga de temática japonesa e de lá retirou um maço de cigarros e um isqueiro. Foi até a varanda, tirou um cigarro de dentro do pacote, depositou-o na mesa feita de roda de carro de boi e sentou-se na cadeira de balanço de vime. Inclinou-se para trás, acendeu o cigarro e mirou a lâmpada mortiça incandescente brilhando no teto. De lá, um inseto caía fulminado no chão após ir buscar a luz naquele objeto.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
Galeria
Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.