A metade final da década de 2010 indicou o esgotamento da relação capital-trabalho estabelecida na Europa desde o final dos anos 1980, quando aprofundaram-se os princípios de bem-estar social, atingindo-se pináculos como a renda mínima universal, a legalização do consumo de drogas com fornecimento pelo Estado no sistema público de saúde com vistas à redução dos danos, a moderada abertura das fronteiras para trabalhadores vindos das ex-colônias e dos países árabes próximos. Tal processo mudou a cara dos países europeus, e ganhou réplicas em todas as partes do mundo.
Especialmente na América Latina, onde os anos 2000 foram marcados pelo avanço do modelo de bem-estar gestado na Europa, com iniciativas adaptadas ao contexto social e político local, tais como a inclusão de minorias para o acesso à universidade e aos serviços públicos pelo sistema de cotas, as tardias iniciativas de acolhimento às demandas das minorias, como lei contra a agressão à mulher, em favor do aborto (em certos casos, variando de país para país), em favor do uso do nome social por individuos transexuais etc, e também na parte social, com eficazes programas de redistribuição de renda. A esse último, acompanha o forte papel do Estado e a manutenção de sua atuação como regulador da economia, em grande parte por meio de suas estatais do setor bancário, para facilitar o acesso ao consumo.
O esgotamento desse modelo se deu após a crise de 2008. O diagnóstico inicial, de que se tratava do produto do fechamento das grandes instituições financeiras à massa de três quartos da população mundial (sua esmagadora maioria nos países pobres e emergentes), levou à equivocada previsão de que o decênio seguinte mostraria ao mundo um cenário multipolar, com novos protagonistas mundiais como China, Índia, África do Sul, Turquia, Brasil, Irã, Indonésia. Mesmo nos Estados Unidos, o país mais liberal do mundo, o governo recém-eleito de Barack Obama rendeu-se às políticas sociais do presidente brasileiro “Lula da Silva” e buscou iniciar, em vão, uma reforma social a partir de um sistema público de saúde. Desses prognósticos, apenas a China conseguiu confirmar seu novo papel político e econômico na cena internacional.
Os motivos pelos quais não ocorreu o indicado pelos analistas é conhecido desde a chamada “Primavera Árabe”, que iniciou o uso das redes sociais como ferramenta de “guerra híbrida ou informacional” para a desestabilização política e econômica dos países emergentes e, desde então, degringolou internamente a maior parte desses potenciais novos “players” da economia mundial. Essa primeira onda de ataque aos países emergentes resultou na ascensão ilegítima de regimes com verniz democrático e viés excludente e autoritário, como em Brasil, Turquia, Itália, Ucrânia, Chile, Bolívia, Equador, ou na estabilização de regimes que se tornaram subservientes ao novo status quo mundial, caso de África do Sul, Índia, México, Egito, Indonésia. Entre outros, em ambas as listas.
O que importa é que, ainda mais diante da ascensão da China e a nova bipolarização da geopolítica mundial, com a chamada “guerra comercial” replicando o cenário e tensões da Europa pré-guerra dos anos 1910, o ataque do capital financeiro foi na contramão do mundo mais inclusivo que se imaginou dez anos atrás. Com o caminho aberto pela estratégia de guerra híbrida das grandes potências, a pressão que começa nos anos 2020 é pela completa fragilização das garantias sociais para maximização dos ganhos da seguridade social privada, concentrada em mãos de bancos, seguradoras e planos de saúde.
Da França ao Chile, o confronto social como resposta à precarização completa da relação capital-trabalho, ante completa ausência de proteção pelo Estado, deu início desde 2018 a mobilizações de rua que tendem à radicalização (não tão incentivada quanto na Primavera Árabe, por óbvias razões), visto que a completude da estratégia do capital financeiro resultaria num cenário para os trabalhadores próximo ao do pré-guerras, isto é, de relação direta entre o trabalhador e a figura patronal, com exígua (ou inexistente) margem para negociação de direitos e qualidade de vida.
Os anos 2020 prometem uma luta ferrenha e desigual pela manutenção das conquistas das décadas anteriores, com a expectativa de que, apenas com a dinâmica alteração da tessitura das relações políticas e econômicas internacionais, assim como da situação interna dos países, possa haver real reversão do quadro em andamento. O mundo, hoje, gira muito mais rápido que há 20 anos, e é melhor que gire mesmo. Na atual conjuntura, as mobilizações de rua que tomam, sobretudo, a França e o Chile, não darão contas de, sozinhas, mudar o cenário que se desenha para os trabalhadores.
Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para os jornais Brasil 247 e El Siglo de Chile. Foi correspondente internacional na China em 2019.
Clique na imagem para acessar a loja virtual da Bodoque!
Galeria
Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.