Na última quinta feira (30) a empresaria Lorena Vieira, esposa do DJ Rennan da Penha, afirma ter sido vítima de preconceito e racismo por parte dos funcionários de uma agencia do banco Itaú, onde ela pretendia desbloquear um cartão e sacar 1.500,00. A polícia foi acionada e a encaminhou para a 22ª DP (Penha) onde ela afirma ter sido tratada com deboche e descaso pelos policiais.
O lamentável caso de Lorena não é inédito no Brasil. A percepção de sucesso e riqueza está diretamente atrelada a um grupo específico de classe de pessoas. O padrão estético de beleza é determinado por construções ético-morais a que estão submetidos os indivíduos de uma sociedade. No Brasil, com nossa tradição escravocrata e racista, não é difícil perceber quais valores morais permearam a construção de nossa base social. Como tão bem coloca o aclamado filosofo contemporâneo Noam Chomsky: “A amnesia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque mina a integridade moral e intelectual, mas também porque prepara o terreno e estabelece as bases para crimes que ainda estão por vir”.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o 1% mais rico do Brasil é formado por 79% de brancos e 17,4% de negros (classificação usada pelo órgão para os que se autodeclaram pretos e pardos. Os percentuais restantes se referem a amarelos e indígenas). Interessante como que mesmo com uma maioria populacional negra o “sucesso” financeiro pertence ao branco.
O problema de Lorena e tantos outros brasileiros é que eles, em algum momento, passaram a ocupar lugares que não lhes dizem respeito. Lugares que não lhes cabem. Lugares que historicamente foram destinados e construídos para uma única singularidade racial. Para simplificar, algo como: “Não tenho nada contra negros, tenho até amigos que são”.
Parafraseando a ideia de Zygmunt Bauman em o “Mal estar da pós-modernidade”: Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em “sujas”, mas tão somente sua localização na ordem das coisas imaginadas. Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes são louváveis nos pés de um empresário, agora, tornam-se sujos e indesejados se colocados na mesa de jantar. Lorena e tantos outros brasileiros ainda causam estranheza, simplesmente por estarem aonde estão.
Compreender como a sociedade desenvolve suas noções de beleza através de padrões estéticos é fundamental para perceber como se desenrolam as interações éticas nesta sociedade. O que é o belo? Quem é belo? Quais os padrões impostos que determinam o belo? Essas são perguntas cruciais a serem feitas, afim de compreender além do senso comum, o que houve no caso de Lorena.
Como descreve tão bem o filosofo francês Gilles Lipovetsky: “A ética estética hipermoderna se mostra impotente para criar uma existência reconciliada e harmoniosa: nos a sonhamos voltada para a beleza, e ela é voltada para a competição”. Ou seja, o “sucesso” em um mundo cada vez mais competitivo parece estar reservado para poucos – não aqueles que fizeram por merecer, como apregoa a meritocracia barata, mas sim e em primeira instancia a aqueles que são belos (ou merecedores por herança genética).
O cenário econômico mundial não parece promissor. Autores aclamados, como Yuval N. Harari, já desenham suas previsões sobre um futuro onde a Inteligência Artificial tomará a frente do ser humano nos postos de trabalho. Ainda mais competição e segregação. Cada vez menos espaço para todos.
Não são poucos os autores contemporâneos que observam e escrevem sobre tais fenômenos. Parece claro afirmar que em um mundo onde a riqueza se concentra cada vez mais em menos lugares, grupos ou indivíduos, a competitividade gerada cria um cenário cada vez maior de aversão aos “não belos”, aos que não deveriam ocupar tais espaços de proeminência ou privilégio.
Evidentemente que tais fenômenos não se limitam ao Brasil. Na Alemanha o livro “A Alemanha se dissolve” de Thilo Sarrazin se tornou best-seller de enorme sucesso ao defender a tese de que os imigrantes estão destruindo o país. A chanceler Angela Merkel embora tenha condenado o livro declarou que o multiculturalismo alemão “fracassou estrondosamente”: os turcos importados para fazer o trabalho sujo na Alemanha não estão conseguindo se tornar autênticos arianos, louros de olhos azuis.
Em sua obra “A salvação do belo”, Byung-Chul Han explica etimologicamente o sentido da noção de beleza presente na construção do sentido alemão. Uma multidimensionalidade é o que caracteriza o termo inglês fair. Significa tanto justo, como também belo. Tambem fagar, do alto alemão antigo, significa belo. A palavra alemã fegen significa originalmente tornar brilhante. O duplo sentido de fair é uma indicação expressiva de que a beleza e justiça originalmente estabeleceram-se da mesma representação. A justiça é sentida como bela. Uma sinestesia particular vincula a justiça com a beleza.
Dessa forma, a presença do belo é um convite a ética. Como entender o racismo e o preconceito como ações éticas? Como compreender uma sociedade que insiste em considerar como “estranhos” aqueles que carregam justamente as diferenças que nos caracterizam como homo sapiens? A própria noção de raça que nos divide já é uma noção criminosa tão aperfeiçoada pelo nazismo alemão.
Se a simples presença do belo (e todos são) é um convite ao comportamento ético como justificar a morte de Galdino Jesus dos Santos? Como justificar a prisão de Leonardo dos Santos em 25/01/2019 que simplesmente foi confundido com um criminoso por ambos serem negros? Como explicar o ainda aprisionamento de Rafael Braga? Como interpretar a ação dos funcionários do banco e da polícia ao abordar Lorena Vieira na ultima quinta-feira?
O grande antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro em sua obra “O Povo Brasileiro” nos fornece variadas dicas sobre como interpretar todas as questões do parágrafo anterior: “Fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade”. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que se torna impossível dentro da estrutura de classes. Uma sociedade que precisaria ser totalmente refeita, das reflexões éticos-morais aos conceitos estéticos.
Atualmente nenhuma política do belo é possível, pois a política atual é totalmente subordinada a coerções. A política do belo seria uma política da plena liberdade, porém a liberdade para todos parece cada dia mais escassa. Galdino, dos Santos, Braga e Lorena Vieira não tiveram liberdade. A sociedade não foi ética com estes. Com tantos outros.
O que nos resta? Desfazer toda uma estrutura social? Investir em educação? …
Referências bibliográficas:
1 – Noam Chomsky – Quem manda no mundo, 2016
2 – Zygmunt Bauman – O mal-estar da pós modernidade, 1997
3–Gilles Lipovetsky – A estetização do mundo. Viver na era do capitalismo artista, 2014
4 – Yuval Noah Harari – 21 lições para o século, 2018
5 – Matthew Weaver, “Angela Merkel: GermanMulticulturalismHasUterlyfailed”, The Guardian (Londres), 17 de outubro de 2010.
6 – Byung-Chul Han – A salvação do belo, 2015
7 – Scarry, E. On Beauty and Being Just. Princeton, 1999, p. 93.
8 – Darcy Ribeiro –O povo brasileiro. A formação e o sentido do brasil, 2013
9 – Byung-Chul Han – A salvação do Belo, 2015
Guilherme Mative Butikofer Keppk é professor, graduado em Teologia e graduando em Sociologia Política pela FESP-SP.
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