Bacurau e o(s) Nordeste(s) que querem se ver (Parte 2)

O maior fenômeno do cinema nacional do último traz para a tela a subversão, descolonização e pluralidade que tanto faltam ao se falar da região

Vinícius Oliveira Rocha

Domingas (Sônia Braga) e Michael (Udo Kier)

Bacurau e o(s) Nordeste(s): uma construção histórica, política e sociocultural

Vamos deixar as coisas bem claras aqui: não existe o Nordeste.

Pelo menos não o Nordeste como essa entidade homogênea, de um único povo, um único sotaque, uma única cultura, uma única vegetação. Nordeste que foi “azeitado” e construído por cerca de um século e meio. Mesmo enquanto região geográfica institucionalmente estabelecida, o Nordeste é mais recente do que se pressupõe: a sua atual configuração em nove estados data de 1969. Historicamente, há uma determinada flexibilidade na presença de estados como Bahia, Piauí e Maranhão dentre os que constituem a região, sendo ou não considerados estados nordestinos.

Até a I Guerra, não se via o Brasil como uma nação, predominando até então uma visão regionalista que buscava no meio, na natureza e na raça as respostas para as diferenças entre o Norte (que se estendia da Amazônia até Sergipe) e o Sul (que ia da Bahia até o Rio Grande do Sul). Prevalecia um abismo comunicacional e interativo entre as duas regiões, abismo esse transposto apenas ocasionalmente por figuras políticas, intelectuais e jornalistas.

Em 1877, uma devastadora seca atingiu o Norte, e a partir daí o elemento “seca” passa a ser indissociável da região. Os políticos nortistas passam a clamar a atenção do governo para os problemas das suas províncias/estados, ancorando-se justamente no discurso da seca e de que como o Norte era negligenciado pelo poder político baseado no Sul.

A forma como esse discurso vai sendo reforçado, definindo quais estados eram atingidos pela seca e quais não eram, é o que gradativamente vai estabelecendo a separação entre o Nordeste e o que futuramente virá a ser conhecido como o Norte. O primeiro uso da palavra “Nordeste” se dá em 1919, pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS). Trata-se de um discurso institucional que destaca essa área do restante do Norte do país por ser mais sujeita às estiagens e que, portanto, deveria receber especial atenção do governo federal.

(Embora, como vários amigos e conhecidos meus nordestinos já relataram, ainda há quem ache que Norte e Nordeste são tudo a mesma coisa.)

A imprensa tem um papel importantíssimo na configuração dos discursos e símbolos que permeiam o Nordeste. Jornalistas enviados ao longínquo Norte escrevem textos que ilustram seus estranhamentos e impressões, portando-se como enviados a áreas e povos exóticos. São esses estranhamentos e exotismos que vão ajudando a moldar a identidade “paulista” e “nordestina” – carregadas de contrapontos. Percebam, entretanto, como a identidade paulista é restrita a seu estado e nunca diz respeito à região da qual faz parte; enquanto isso, a identidade nordestina/nortista é genérica, homogênea, metonímica – traduz um todo em apenas uma parte.

As diferenças entre essas identidades estão ancoradas num discurso majoritariamente eugenista. Para quem não sabe, eugenia é um termo criado pelo antropólogo inglês Francis Galton que significava “bem-nascido”. Nas palavras de Galton, a eugenia seria “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”. Se você não acha a existência desse conceito minimamente controversa, basta dizer que ele foi parte fundamental da ideologia de supremacia e pureza racial dos nazistas que culminou no Holocausto.

Aqui no Brasil, a eugenia se fez presente no tratamento diferenciado e superior conferido aos imigrantes europeus, os quais se estabeleceram em sua maioria no Sul na iminência do contexto pós-abolição. A presença deles em São Paulo e nos demais estados reforçava a pureza da raça branca que se havia estabelecido na região, livre da miscigenação entre negros, índios e brancos que havia “contaminado” as populações nortistas. Te lembra alguma coisa?

Pois é, nossos personagens sudestinos em Bacurau repetem o que jornais já diziam há no mínimo um século. Cerca de 100 anos atrás, O Estado de São Paulo enviou Paulo Moraes de Barros à Juazeiro do Norte, no Ceará, para escrever uma série de artigos conhecida como “Impressões do Nordeste”. Segundo Barros, era a inferioridade racial dos nordestinos que justificava a violência e o fanatismo religioso que abundava por essas terras – e tanto uma quanto o outro serão parte fundamental do imaginário que até hoje é composto sobre o Nordeste.

Em seguida, o jornal publicou outra série de artigos, intitulada “Impressões de São Paulo”, onde buscava “evidenciar” a superioridade de São Paulo e de sua população, cujos traços europeus se sobressaíam no lugar da herança negra em decorrência da escravidão e tampouco indígena ou mestiça. Essa ascendência europeia e branca era digna de orgulho e supervalorização, sendo a base do progresso e do desenvolvimento paulista em detrimento das demais regiões.

Daisy (Ingrid Trigueiro) e Damiano (Carlos Francisco)

E o que dizer do famoso Euclides da Cunha? Que ao escrever Os Sertões (sobre a guerra de Canudos, na Bahia) cunhou a famosa frase “o sertanejo é, antes de tudo, um forte…”, mas em sequência escreveu outra frase que é pouco conhecida: “… não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastêmicos do litoral”. Para o jornalista e escritor paulista, o sertão era um espaço onde a nacionalidade se mantinha intacta, livre das influências da civilização litorânea. Seria onde se mantinham escondidas as verdadeiras raízes brasileiras.

Assim, o Sul vai constituindo sua própria visão, pautada no exotismo e na superioridade racial, sobre o Norte/Nordeste. Isso, obviamente, gera reações dos nortistas e nordestinas, mas ainda é uma reação orientada a partir das elites intelectuais, econômicas e políticas.

O grande centro de produção dos discursos regionalistas pró-Nordeste é Recife, à época já uma das principais e mais populosas cidades do país. Para lá eram enviados os filhos dos líderes dos grupos político-econômicos dos estados vizinhos, com a Faculdade de Direito de Recife e o Seminário de Olinda servindo de locais de encontro dessas figuras intelectuais e de fomento de ideias.

É também em Recife que está sediada uma imprensa que possibilita a divulgação destas expressões regionalistas, visto que um jornal como o Diário de Pernambuco tinha uma área de cobertura que se estendia de Sergipe até Maranhão – e tal área de influência (que configurava até onde podia se veicular esses discursos) também é fator determinante do que se entenderá por Nordeste.

Autores como Gilberto Freyre se tornam referenciais importantes para a instituição de um discurso combativo ao que se dizia nos jornais sulistas: através de livros, artigos publicados em jornais e congressos regionais, ele e seus companheiros incitam a formação de uma região nordestina unificada contra os interesses e opiniões preconceituosas do Sul, nem que isso significasse eliminar os particularismos de cada estado nordestino para fortalecer a “comunhão regional”. Portanto, o discurso homogeneizado ainda presente no Nordeste até hoje também é fruto de estratégias de defesa e não apenas de uma visão xenófoba.

Mas Freyre e seus associados não deixam de ser filhos da aristocracia decadente da cana-de-açúcar, e eles cometem dois erros a meu ver absurdos: o primeiro de falarem de uma suposta “democracia racial”, como se as relações entre brancos, negros e índios no Nordeste e no país sempre tivessem sido pacíficas e cordiais (uma ideia tão mentirosa quanto a de que a miscigenação causava a inferioridade racial dos nordestinos); e o segundo de vincularem o Nordeste como um entorno da Zona da Mata, da “civilização do açúcar” cujo centro era Recife. Nos seus escritos, os sertões ganhavam pouco ou nenhum espaço.

Mas no fim das contas, foram os sertões que prevaleceram como a imagem definitiva do Nordeste. Porém, como eu disse, não foram apenas os sulistas e sudestinos que construíram esta visão; os intelectuais da nossa própria região tiveram grande contribuição. Seja na literatura (José Américo de Almeida, Raquel de Queiroz), na música (Luiz Gonaga), no cinema (Lima Barreto, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha), no teatro (Ariano Suassuna, Augusto Boal) ou na política. É o sertão arcaico, retrógrado, tradicionalista; dos fanáticos religiosos, dos cangaceiros, pistoleiros, da miséria, da ignorância, da caatinga, da terra seca, da falta d’água constante, dentre outros referenciais e símbolos.

São esses símbolos que Bacurau des(cons)trói no decorrer das suas pouco mais de 2h de duração. O filme nem precisaria incluir as tramas dos estadunidenses que já seria um estudo fascinante por si só na forma como mostra um sertão totalmente por fora das suas estereotipadas representações.

Embora não seja um filme que se preste a ser um estudo de personagens (e onde alguns viram nisso uma falha, eu não vi, por entender que a proposta da obra seja justamente de trabalhar a coletividade), ele oferece o suficiente dos membros dessa comunidade para entendermos como eles quebram a noção de um sertão retrógrado e potencialmente preconceituoso. As questões de gênero e sexualidade são abraçadas de tal forma que é como se nem fosse mais necessário discuti-las: da personagem travesti Darlene que permanece de vigia na entrada da comunidade alertando a todos sobre quem está chegando (e parece viver uma relação poligâmica pacífica com outros dois homens), passando pela doutora Domingas (Sonia Braga) que vive num relacionamento aberto com outra mulher, e culminando em Lunga, ora referido como homem, ora como mulher, trajando vestimentas que fluem entre os dois gêneros e nem por isso ser menos viril, violento(a).

Lunga (Silvero Pereira)

Além disso, as lideranças da comunidade se dividem entre um pistoleiro (Pacote/Acácio) e um professor (Plínio). Este professor, assim como outros personagens, se vale livremente da tecnologia no seu dia-a-dia, mostrando como Bacurau como uma comunidade tecnológica e progressista, cuja vivência de resistência é o que lhe permite saber quando forças ocultas tentam invisibilizá-los para destruí-los. Afinal de contas, quem se importa com um povo que é massacrado todos os dias se sequer ouvimos falar dele?

Chega a ser curioso como num longa que retrata uma realidade local (para o mundo inteiro ver), Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles se apropriem de linguagens e técnicas cinematográficas de alguns diretores estrangeiros. Talvez o principal homenageado seja John Carpenter, que não apenas é referenciado através da forma como a história ilustra o medo do desconhecido (como em O Enigma do Outro Mundo), mas na trilha sonora – que conta com uma música autoral de Carpenter, intitulada “Night” – ou até na escola da comunidade chamada… “João Carpinteiro”. Há também um quê de Brian DePalma (no plano em que Darlene avisa da chegada dos motoqueiros em Bacurau), e a violência, no silencioso clímax da obra, é mais Sam Peckinpah do que Quentin Tarantino.

Porém, os diretores nunca traem a proposta do filme ao se tornarem meros imitadores e plagiadores. Eles fazem algo que a cultura brasileira sempre soube fazer bem: ressignificam, “antropofagizam” o exterior numa apropriação inteligente que conversa com a nossa realidade. Essa antropofagia de influências externas estava na Semana Moderna de 1922 e na Tropicália sessentista. É utilizada, inclusive, para valorizar a ancestralidade, tema que percorre o filme desde o funeral de Dona Carmelita até seu clímax, quando vemos, num belo foreshadowing do destino dos inimigos da comunidade, as cabeças decapitadas nas fotos do Museu de Bacurau, bem como os cangaceiros que fazem parte dessa ancestralidade.

Pois aqui, os cangaceiros, outrora ícones do atraso e da violência selvagem destes sertões sem lei, são motivo de orgulho e inspiração para o que se deve fazer aos que perturbam a existência dessa coletividade. “Bacurau” não nos dá respostas definitivas ao seu final. Outros estrangeiros poderão vir, outros estadunidenses “comuns” e obcecados pela sua cultura de armas e violência (a um nível até mesmo erótico) como os que servem de antagonistas ao longa. Não há respostas sobre se algum dia o Nordeste estará finalmente livre do estigma do sertão, da seca, da miséria, do cangaço, do atraso e da inferioridade.

Se existe alguma resposta, alguma mensagem, essa está nas palavras de Geraldo Vandré, músico baiano cuja música “Requiém para Matraga” dá o tom do final do filme e a palavra final:

Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar

Tanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar

            Afinal de contas, somos gente e merecemos sermos tratados como tal.


Vinícius Oliveira Rocha é um paulista de nascimento e baiano de coração que atualmente reside em Aracaju-SE, onde faz graduação em Jornalismo. É aficionado por cinema, música, literatura, TV, cultura pop e mobilidade urbana, e autor do livro de fantasia infanto-juvenil “O Destruidor de Mundos”.



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