O barulho da vassoura de Berta no corredor, indicava para Elisa que logo seria a hora de sair. Até porque não haveria motivos de Berta começar a gastar seus braços e força de trabalho, se o áureo horário da saída estivesse longe, isso significaria que ela teria que começar a limpar o escritório todo de novo, e se havia algo que Elisa sabia sobre Berta era a sua filosofia de fã do Chaves,especialmente daquele personagem que só queria evitar a fadiga.
Não excepcionalmente hoje, ela já tinha se livrado do sapato que havia machucado seu calcanhar no caminho para o trabalho, precisou chegar e procurar na sua bolsa algum curativo que a possibilitasse caminhar quando necessário. Toda vez que ela recorria a esse método de proteção, soltava um sorriso calado, pois se lembrava de quando Elis Regina cantava “e a ponta de um torturante band-aid, no calcanhar” e sentiu saudade das músicas que escutava naquele cd que ela e seu irmão haviam dado ao seu pai quando ainda eram crianças, por isso, discretamente digitou no YouTube as palavras “Dois pra lá e dois pra cá” , enquanto organizava as suas funções para esse dia de trabalho.
Mais uma vez, se emocionava com a bela música, e até deixava seus pés escondidos pela mesa, arriscarem alguns movimentos como se estivesse apta a dançar um bolero a noite toda .
Ela desejava somente ter um alívio antes de efetivamente começar o trabalho, porém novamente uma coisa aleatória se transformava em uma lembrança, agora musicada, daquela noite fria de maio, que no meio da rua, eles dançaram uma música que não existia,
“A tua mão no pescoço
As tuas costas macias
Por quanto tempo rondaram
As minhas noites vazias”
algo que não era, mas parecia tão distante, não seria possível que por mais uma vez ela iria concordar com as músicas do Roupa Nova, ao perceber que “De manhã, buscando a minha paz, Meu desejo vai te procurar”, mentalmente pulou da outra canção para essa, e ao repassá-la, silenciou-se na esperança “Amanhã, quem sabe eu possa te achar,tanta coisa eu tenho pra falar” .
Precisava escrever, mas não poderia ser mais uma carta de amor, onde ela confessava que a imagem dele era a primeira que vinha quando ela fechava os olhos, e questionava as desrazões daquele sentimento. Dessa vez ela cumpriria a promessa dela para ela mesma, seria dura, relembraria da confiança depositada, das mentiras recebidas. Como ela tinha tanto a dizer, e ele não queria ouvir, sem confiança nenhuma ela não percebeu que cantarolava “quando eu coloquei um caminhão de açúcar no seu mel”, até ser interrompida pelo chefe, perguntado dos orçamentos para alguma coisa que já estava na mesa dele desde ontem.
O dia era isso, assinava documentos,resolvia problemas, se distraia com a palhaçada de alguém, fugia para conversar com as amigas no whatsapp, anotava no papel o que a agenda do celular a lembrava e resolvia tudo na hora do almoço.
Estava decidindo que faltaria a academia hoje, precisava escrever, nada que desse para saber o quanto até hoje ele mexia com ela, lógico que não! Os sorrisos largos das fotos do Instagram não poderiam abrir brecha para outra conclusão. Aqueles olhos tão fixos, aquela voz tão calma, tudo truque, ela sabia que toda a leveza que ele descrevia era fruto de uma vida marcada
Olha lá! Ele não é feliz
Sempre diz, que é do tipo cara valente
Mas veja só: a gente sabe
que esse humor é coisa de um rapaz
Que sem ter proteção
Foi se esconder atrás
Da cara de vilão
A hora do almoço chegou, Elisa viu no papel que havia escrito no início do dia que precisava comprar a passagem para pagar a visita que devia a sua amiga da faculdade, não podia furar mais uma vez com ela, a preguiça era somente dos trâmites da viagem, porque chegando lá seria maravilhoso, sempre era.
Iria agora no shopping procurar por algumas coisas que estavam faltando em casa, chegaria em casa, separaria algumas coisas pra viagem do final de semana, mas tinha outra prioridade, precisava escrever, não sabia como traduzir em palavras o que estava dentro dela,
Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Sinais de bem, desejos vitais
Pequenos fragmentos de luz
Já tava na hora, precisava seguir a vida.
Sua teimosia em ver o que nisso daria, não fez bem a ela, aos seus planos e ao seu coração.
Mas primeiro precisava usar dessa mesma teimosia para convencer-se que esqueceu-o. Nada de imaginar que ele procurava saber dela, ou olhava suas redes.
Teimosia é um defeito, comum ao teu coração e ao meu
Ela era uma mulher, esses sentimentos trepidantes e adolescentes não podiam fazer parte da sua vida.
Seus pensamentos ferozes foram interrompidos ao olhar despretensiosamente para o relógio, precisava apressar os passos se não quisesse chegar atrasada.
Agora enfim a hora de ir para casa estava chegando , era o tempo de terminar um relatório, ler e assinar os cinco documentos que faltavam e estaria livre para chegar em casa e fazer o que precisava.
O trânsito estava infernal, essa cidade é muito pequena para essa quantidade de carro. Cada minuto que se passava era uma palavra de desabafo que ela esquecia, não queria terminar a noite abraçada a um travesseiro, chorando e se questionando
Eu tentei dar um basta e não voltar atrás
Nunca mais
Eu jurei que era fácil te deixar em paz
Quando vai cair a ficha que eu amo você?
A próxima esquina era conhecida. Chegara em casa. Deixou tudo em cima da mesa. Deixou o computador ligando enquanto se preparava para tomar banho.
Sentou-se em frente ao computador, colocou seu fone e nem precisou muito para escolher a música, seria mesmo aquela, que aprendera a gostar com seus pais, os acordes iniciais em ré maior, não deixavam dúvidas que era isso mesmo que ela precisava.
Começou a escrever
Suas palavras iniciais eram tão rápidas que quando a voz grave do cantor soou ao seu ouvido, parecia descrever o que ela estava fazendo naquele momento, parecia também que ela já havia descarregado meio mundo
Tantas palavras, meias palavras
Ela se fascinava com a capacidade que existia em pessoas que sabiam dar novos sentidos às palavras usuais.
Aquela música era extremamente linda, mas o que no início ela achava que era uma constelação, era a comparação de um relacionamento com uma cidade no sul do Vietnã, que fora bombardeada na guerra,
Não estava ela vivendo na sua própria Saigon?
Me disse adeus, no espelho com batom
Já esteve destruída, mas capaz de descrever o cenário mais lindo possível, para tornar seus pensamentos possíveis
Vai minha estrela,iluminando
Toda esta cidade
Como um céu ,de luz neon
Da mesma forma, ela sabia da frivolidade em que ele vivia.
Ele era denso demais, profundo demais, para estar se colocando de verdade em coisas muito pequenas, iguais a que ele estava se propondo a viver
Às vezes
Você anda por aí
Brinca de se entregar
Sonha pra não dormir
Os dedos continuavam ágeis no teclado, mas as coincidências eram incríveis. Os sentimentos eram muito conflitantes, como se realmente estivesse vivendo um romance em meio a guerra
E quase sempre
Eu penso em te deixar
E é só você chegar
Pra eu esquecer de mim
Era verdade, precisava concordar.
Ela não era exemplo de organização. Sabia resolver qualquer problema que surgisse em sua mesa, mas ao se tratar de coração, sabia somente dar conselhos as suas amigas, e todos baseados na razão. Se alguma delas insistisse ela completaria com um jargão já conhecido de todas as sua personalidades e sentimentos “quando a gente gosta é difícil”
Mas ela sabia que mesmo no escuro de uma mistura de sentimentalidades, a vista de lá era bonita
Anoiteceu!
Olho pro céu e vejo como é bom
Ver as estrelas na escuridão
Procurou saber mais sobre a cidade. Ela havia mudado. As duas. Aquilo que foi uma cidade destruída, hoje se chama Ho Chi Minh, a maior cidade e principal centro financeiro, corporativo e mercantil do Vietnã, uma cidade histórica e portuária, recebendo a classificação de cidade global beta, por parte do Globalization and World Cities Study Group & Network.
Ela também se transformara, num movimento que pelos que ainda acreditam na veracidade do globo terrestre, se rotacionou por ela mesmo,e teve que ficar mais segura, mais adulta.
Só que a história fica, o sentimento também.
Ela não precisava mais escrever, tudo que ela queria já estava ali, naquele último verso.
Espero você voltar pra Saigon
Aurora Rodrigues é estudante de literatura e anda escolhendo quem quer ser, mas não encontrou saída para a alergia a amendoim, a paixão por jujuba e o ódio por guaraná Antártica. Quanto ao resto, tem usado o próprio nome para tentar refletir o renascer dentro de si.
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