“É importantíssimo que todos continuem em casa pelas próximas semanas para que a curva do contágio do COVID-19 seja achatada. ” Esta é uma voz quase universal nos últimos dias e, a trancos e barrancos, as pessoas têm aderido. Em isolamento, no entanto, existem pelo menos dois desafios a superar: a solidão para alguns, e a convivência, para a maioria.
Não quero diminuir o problema de sentir-se só, inclusive porque é ele que diz da grande quantidade de idosos que insistem em manter suas rotinas em praças, armazéns, supermercados. A sensação de encontrar companhia alimenta o pensamento produzindo ânimo, e, se observarmos o grau de atomização social que vimos construindo ao longo do último século, não deveria ser estranho o fenômeno dos “velhinhos indisciplinados”.
Neste texto gostaria de pensar o potencial do confinamento.
Saindo da leitura de Albert Camus em torno do problema da Peste é ainda um seu contemporâneo, Jean-Paul Sartre, que ajuda a perceber esse espaço de relação tão difícil em que somos obrigados a esbarrar com os Outros. Pode parecer estranho escrever com letra maiúscula um conceito que vai remeter a pais, filhos, esposa, marido, familiares, enfim, pessoas conhecidas. Claro que são conhecidas, mas à distância, com espaço para ir, vir; sair, voltar. Em troca da manutenção da vida a pandemia nos tira a mobilidade no espaço. Confinados sob um mesmo teto vinte e quatro horas por dia ao longo de semanas, quanto desse conhecimento se mantém?
No ano de 1944, ainda durante os conflitos da Segunda Guerra Mundial, Sartre atende ao pedido do editor Marc Barbézat para escrever uma peça capaz de reduzir ao máximo os elementos cênicos, e que fosse curta o suficiente para ser encenada com facilidade de maneira itinerante. Vindo de uma última obra teatral de caráter político (As Moscas, 1943) ele escreveu “Huis Clos”, traduzido para o português com o título “Entre quatro paredes”, um espetáculo com apenas 4 personagens, e que se desenrola num único cenário.
Famosa pela frase “O inferno são os outros” a peça é carregada pelo existencialismo e se desenvolve sobre a premissa original de três pessoas que não se conhecem, mas, após a morte, são levadas para cumprir suas penas eternas num cômodo em estilo do Segundo Império francês que seria nada mais nada menos que o inferno. Nenhum fogo, carrasco, corrente, tortura física, violência. Apenas um ambiente sem janelas, quatro paredes, três poltronas, uma porta que permanece quase sempre trancada por fora – mas que poderia ser aberta pelo mordomo caso uma campainha fosse tocada e funcionasse. Além disso nada de escova de dentes, nem espelhos. Lá as pálpebras não se fecham, lágrimas não escorrem, a luz não se apaga. Impossível sair e impossível morrer. Eis o inferno.
Ao longo da curta história nós acompanhamos a convivência de três personagens bem diferentes neste quarto. Garcin é um jornalista covarde que torturava emocionalmente sua esposa e desertou quando foi chamado a defender a bandeira pacifista durante a guerra. Inês se ressente da tragédia que aconteceu a partir de um triângulo amoroso no qual estava envolvida. Ela odeia os homens e ama mulheres. Por fim, conhecemos Estelle, uma mulher ardente em desejo e que ao engravidar de seu amante dá à luz um bebê que logo em seguida é assassinado por ela. Aparentemente nenhuma relação entre os três. É daí que surgem os atritos.
Não suponha que ao contar os crimes cometidos pelas personagens e que as levou para o sofrimento eterno eu tenha estragado alguma parte da fruição da obra. Absolutamente. Não são as efemérides individuais que compõem o quadro de desconforto por lá, é o que cada um passa a representar para o Outro, a maneira como têm seus desejos atendidos ou negados, em síntese, são as expectativas particulares que constroem o plot da narrativa.
A análise existencialista da vida se volta para as situações mais comuns ou fundamentais do cotidiano, nas quais o homem pode encontrar a si mesmo. Em oposição ao romantismo oitocentista, o existencialismo defende que nossa liberdade é condicionada, finita e obstada por muitas limitações que a todo momento podem torná-la estéril. Não existiria, portanto, uma liberdade essencial garantida aos indivíduos, nem mesmo uma noção de progresso, já que não se pode observar nenhuma garantia de que ele venha a acontecer. A convivência seria a única possibilidade, mas possibilidade de que? De qualquer coisa, eis a solução! Ou o problema!
Os desejos dos três, suas fixações, seus apelos, tudo é diferente, sem que sejam, porém, intocáveis. Nas fronteiras de cada uma das ambições particulares há pontos de contato nos quais, aparentemente, se poderia satisfazer a todos, mas isso jamais acontece. Para Sartre a condenação está aí. Pela voz de Garcin é que ouvimos a famosa expressão já quase no final do texto: “O bronze… Pois bem, é agora! O bronze aí está, eu o contemplo e compreendo que estou no inferno. Digo a vocês que tudo estava previsto. Eles previram que eu haveria de parar em frente deste bronze, tocando-o com minhas mãos, com todos esses olhares sobre mim. Todos esses olhares que me comem! Ah, vocês são só duas? Pensei que fossem muitas, muitas mais! Então, é isso que é o inferno! Nunca imaginei…. Não se lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha…. Que brincadeira! Nada de grelha. O inferno… O inferno são os outros! ”
Não penso que estejamos vivendo uma condenação eterna no estilo The Good Place, mas o que Sartre aponta, e hoje somos de alguma maneira forçados a contemplar, são os desafios da convivência forçada, sob o mesmo teto, de pessoas que caso tivessem a menor possibilidade de fazer diferente, com certeza estariam fazendo. Existe uma certa ironia em tudo isso. Enquanto indivíduos podemos traçar estratégias de aproveitamento do tempo que satisfaçam nossos desejos particulares, porém, basta que precisemos conviver para que o caldo desande.
Talvez a convivência seja o inferno! Não precisa ser, óbvio, e pode estar aí o aprendizado mais relevante para depois do COVID-19. Quando momentos de calamidade pública passam é natural que o sentimento de solidariedade venha à superfície, só que não é disso que precisamos enquanto sociedade, solidariedade é pouco. É urgente resgatar a dignidade da condição humana que se reconhece e é capaz de interagir com a pluralidade de suas expressões.
Não sou médico, mas suspeito que a pandemia não seja uma “gripezinha de nada”. Também não sou economista, mas suspender salários por até quatro meses ou obrigar pessoas a se exporem ao vírus em ônibus, metrôs e trens, neste momento, não é lá muito racional. Humano eu sou, e ouvir que cinco ou seis mil mortes são aceitáveis, isso é uma abominação!
Aprendemos a tolerar todo esse absurdo porque fomos alienados e nos esquecemos de que outras pessoas existem bem pertinho, e que, diante da morte, a régua é sempre horizontal. Viver em confinamento, hoje, pode ser fundamental para que a sociedade repense a si mesma. Não se trata de esperar que tudo volte ao normal, porque o que chamamos de normal vem se mostrando insustentável para a vida coletiva.
Alguns meses de condenação entre quatro paredes podem gerar a escolha de uma liberdade maior. Será que é possível mesmo, descobrir que existem outras pessoas como nós vivendo no mundo? Já pensou como seria… Vivemos uma potencial revolução, de pijamas, quase sem perceber.
Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.
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