Dos vários medos que enfrentamos em nosso dia a dia, destaca-se com grande furor, as doenças que nos assolam de tempos em tempos. Algumas dessas tomam proporções gigantescas e passam a ser classificadas como pandemias, é o caso da COVID-19, ou como ficou conhecido mundialmente, Coronavírus. Em tempos de isolamento social, a internet e suas redes sociais são ferramentas que podem contribuir tanto positivamente quanto negativamente – vide as fake news -. Diante desse excesso de informação, desenvolver um senso crítico é dever de todo cidadão.
Por isso e devido à minha formação em História, diversas pessoas têm me perguntado – pelas redes sociais, claro, para evitar contato – se a COVID-19 é a maior pandemia que já tivemos, se ela poderia ser comparada com alguma outra doença, e por aí vai. Sendo assim, respondo: bactérias, vírus e vários outros microorganismos afligem a humanidade há séculos, como a Peste Negra entre os séculos XIV e XVIII; a sudâmina nas ilhas Britânicas e Alemanha entre os séculos XV e XVI; e ainda tivemos o tifo, a varíola, a cólera, a tuberculose, a gripe espanhola, o HIV… Por isso, decidi escrever esse texto sobre algumas das doenças que marcaram a humanidade; para esclarecer dúvidas, desmentir boatos e, principalmente, informar.
A PESTE NEGRA
A Peste Negra, segundo o historiador Jean Delumeau, já existia na bacia mediterrânica entre os séculos VI e VIII com uma periodicidade de surtos a cada nove a doze anos. No século IX dava a impressão que havia desaparecido, mas, ressurgiu brutalmente em 1346 e se espalhou pela Europa, atingindo ainda com força o continente asiático e o norte da África. Hoje sabemos que a peste – conhecida atualmente como peste bubônica – era causada pelo bacilo Pasteurella pestis e que possui duas formas de transmissão: através da picada de pulgas oriundas de ratos portadores do bacilo e através da contaminação de uma pessoa para outra por meio da saliva. Como grande parte das cidades europeias não possuíam um planejamento e estruturação adequadas, você tinha centros populacionais abarrotados de famílias sem a existência de um sistema básico de esgotos e, por isso, todos os dejetos (sujeira das casas, animais mortos, fezes, alimentos estragados, etc…) eram jogados nas ruas. Mesmo as grandes cidades medievais, como Milão e Marselha, não possuíam um recolhimento regular do lixo, sendo assim, a proliferação de ratos portadores do bacilo Pasteurella pestis era enorme.
A peste atacava principalmente no verão, pois “a pulga prefere com efeito uma temperatura de 15-20º em uma atmosfera com 90 a 95% de umidade ”. Um médico de Marselha observou em 1720:
“A doença começava com dores de cabeça e vômitos e seguia-se com forte febre […] os sintomas eram, comumente, calafrios regulares, um pulso fraco, frouxo, lento, um peso na cabeça tão considerável que o doente tinha muita dificuldade para sustentá-la” […]
O poeta italiano Giovanni Boccaccio a descreveu da seguinte maneira:
“Apareciam, no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs, outras como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o povo de bubões. Em seguida o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras eram pequenas e abundantes. E, do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte, também as manchas passaram a ser mortais” .
Nas regiões da Europa onde a peste dizimava milhares de pessoas, existiam três explicações para sua existência: os estudiosos culpavam alguma “corrupção” do ar, ocasionada pela aparição de alguns cometas, posição de planetas… A população mais pobre culpava pessoas específicas por espalharem de forma proposital a doença, algum judeu, um árabe, uma bruxa… Já a Igreja Católica assegurava ser um castigo divino pelos pecados da humanidade; portanto, convinha apaziguá-lo fazendo penitências.
A Peste Negra foi cruel. No momento em que ela manifestava os primeiros indícios a morte geralmente ocorria em poucos dias ou em até 24 horas, causando ao infectado muito sofrimento e agonia. O número exato de mortes varia bastante, mas, calcula-se que 1/3 da população europeia tenha sido foiçado pela doença. Embora haja desacordos, os números variam de 75 a 200 milhões de mortes – do século XIV ao XVIII – em todo mundo.
A CÓLERA
Culpa-se a Europa, de forma equivocada, por ter “apresentado” ao mundo a cólera – causada pelo bacilo Vibrio cholerae –, que passou a se espalhar pelo mundo em 1817 (tendo já relatos de sua existência desde os séculos XII e XIII). Originária da Ásia, alastrou-se rapidamente pela Europa, acometendo principalmente a França. Em Marselha, Paris e Lille, as pessoas se recusavam a acreditar que uma nova doença estava chegando, alguns críticos diziam que eram invenções da polícia ou dos governantes . Sendo assim, a única forma de evita-la era fugindo da cidade:
“[…] Logo que se viu mudarem-se certas pessoas de condição, uma infinidade de burgueses e outros habitantes imitaram-nas: houve então um grande movimento na cidade [Marselha], onde não se mais do que transporte de móveis” .
Em 1885 a doença desembarca no Brasil, atingindo primeiramente os Estados do Amazonas, Bahia, Pará e Rio de Janeiro. Chegou até São Paulo em 1893, atingindo tanto capital quanto interior. Ao infectar o ser humano, a bactéria faz com que o organismo elimine uma grande quantidade de água e sais minerais, acarretando séria desidratação. A bactéria da cólera pode ficar incubada de um a quatro dias. Quando a doença se manifesta, apresenta sintomas como náuseas e vômitos; cólicas abdominais; diarreia abundante, determinando a perda de até um litro de água por hora; e cãibras. Sua transmissão se principalmente pela água e por alimentos contaminados.
Ainda não erradicada, acredita-se que tenha sido a primeira epidemia a alcançar todos os continentes, causando a morte – segundo a OMS – de 100 a 120 mil pessoas todos os anos no Mundo.
A VARÍOLA
A varíola é uma doença que conhecemos muito pouco de sua origem pois existem poucas provas de sua existência antes do século X. Os primeiros relatos de sua ação se dão a partir do momento em que há grande concentração de pessoas e o surgimento das primeiras cidades próximas aos rios Nilo (Egito), Tigre e Eufrates (Mesopotâmia), Ganges (Índia), Amarelo e Vermelho (China).
Penetrando no corpo, o patógeno se espalha pela corrente sanguínea e se instala, principalmente, na região cutânea, provocando febre alta, mal estar, dores no corpo e problemas gástricos. Logo depois destas manifestações surgem, em todo o corpo, numerosas protuberâncias cheias de pus, que dificilmente cessam sem deixar cicatrizes, e conferem coceira intensa e dor.
Entre os séculos XI e XV, a doença atinge praticamente toda a Europa (exceto a Rússia). Ainda no século XVI, a varíola difundiu-se da Península Ibérica para a costa oeste da África, da América Central e do Sul. No século XVII, a doença atinge a América do Norte e a Rússia. “A varíola não era doença autóctone das Américas, sendo introduzida no continente pelos europeus, durante a colonização. O primeiro caso da doença ocorreu em 1507, importado da Espanha, na ilha de Hispaniola (atual República Dominicana e Taiti), dizimando metade da população residente” .
A varíola matou imperadores chineses, czares russos, monarcas europeus e califas árabes. Morreram da doença Luís XV da França, Mary II, rainha da Inglaterra, o imperador José I da Áustria, rei Luís I da Espanha, czar Pedro II da Rússia e d. Pedro Carlos, genro de d. João VI. Muitos sobreviveram. Alguns, com mais sorte, quase sem cicatrizes, como Luís XIV, outros bem marcados, como a rainha Elizabeth I e Mirabeau. Tiveram varíola ainda Catarina de Médicis, Chateaubriand e George Washington. Historiadores da saúde calculam que entre 1896 e 1980 a varíola causou a morte de 300 milhões de pessoas em todo o planeta.
A GRIPE ESPANHOLA
A maior pandemia causada pelo vírus Influenza dos últimos tempos foi registrada há mais cem anos: a gripe espanhola, que assolou a Europa e chegou a atingir diversos países, incluindo o Brasil – por aqui foram cerca de 35 mil óbitos, entre eles o do presidente da época, Rodrigues Alves (1848-1919) -, dizimou entre 30 e 60 milhões de pessoas em todo mundo, segundo a estimativa da OMS. Apesar do nome, não teve origem na Espanha. Recebeu esse nome porque o país seu posicionou de forma neutra durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e os jornais espanhóis eram os poucos da Europa que noticiavam a doença. O seu nome se deu à origem da informação e não à localidade que originou a doença. Nos EUA, o então presidente Woodrow Wilson (1856-1924) emitiu ordens para censurar qualquer notícia que pudesse abalar a população e os soldados. A situação foi a mesma em outras nações em guerra. Foi uma variação do vírus Influenza (comumente associado às gripes recorrentes e ao H1N1). A origem da mutação do vírus da gripe é desconhecida. Os casos tiveram início de 1917 e desde então ela se coloca como uma das doenças mais resistentes de todos os tempos. A letalidade da gripe variou entre 6% a 8% durante o surto.
Sua propagação ocorria pelo ar através de gotículas de saliva e os sintomas eram: sangramento pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos… ficavam azuis com a falta de oxigênio, pois o pulmão inchava de tal forma que impedia a respiração. Caíam de cama pela manhã e à tarde estavam mortas. Geralmente, os vírus da gripe se apoderam das células do nariz e da garganta.
Ainda hoje restam dúvidas sobre onde surgiu e o que fez da gripe de 1918 uma doença tão terrível. Estudos realizados entre as décadas de 1970 e 1990 sugerem que uma nova cepa de vírus influenza surgiu em 1916 e que, por meio de mutações graduais e sucessivas, assumiu sua forma mortal em 1918. Essa hipótese é corroborada por outro mistério da ciência: um surto de encefalite letárgica, espécie de doença do sono que foi inicialmente associada à gripe, surgido em 1916.
O HIV
O vírus da AIDS surgiu a partir de um outro vírus chamada SIV, encontrado no sistema imunológico dos chimpanzés e do macaco-verde africano. Apesar de não deixar esses animais doentes, o SIV é um vírus altamente mutante, que teria originado o HIV. HIV é a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana. “Causador da aids, ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo de doenças. As células mais atingidas são os linfócitos T CD4+. E é alterando o DNA dessa célula que o HIV faz cópias de si mesmo. Depois de se multiplicar, rompe os linfócitos em busca de outros para continuar a infecção. O sistema imunológico é destruído, deixando o organismo frágil a doenças causadas por outros vírus, bactérias, parasitas e células cancerígenas” .
Ser portador do HIV não é a mesma coisa que ter aids. Há muitos soropositivos que vivem anos sem apresentar sintomas e sem desenvolver a doença. Mas podem transmitir o vírus a outras pessoas pelas relações sexuais desprotegidas, pelo compartilhamento de seringas contaminadas ou de mãe para filho durante a gravidez e a amamentação, quando não tomam as devidas medidas de prevenção. Por isso, é sempre importante fazer o teste e se proteger em todas as situações.
Não há consenso sobre a data das primeiras transmissões. O mais provável, porém, é que tenham acontecido por volta de 1930. Nas décadas seguintes, a doença teria permanecido restrita a pequenos grupos e tribos da África central, na região ao sul do deserto do Saara. Nas décadas de 60 e 70, durante as guerras de independência, a entrada de mercenários no continente começou a espalhar a aids pelo mundo. Haitianos levados para trabalhar no antigo Congo Belga (hoje República Democrática do Congo) também ajudaram a levar a doença para outros países. “Entre 1960 e 1980 surgiram diversos casos de doenças que ninguém sabia explicar, com os pacientes geralmente apresentando sarcoma de Kaposi, um tipo de câncer, e pneumonia”, diz a epidemiologista Cássia Buchalla, da Universidade de São Paulo (USP). A aids só foi finalmente identificada em 1981.
Segundo estatísticas da UNAIDS , desde 1981 até o fim de 2018, 32 milhões de pessoas morreram de doenças relacionadas à AIDS. E no mesmo período, 74,9 milhões de pessoas foram infectadas pelo HIV. Não existe cura. Os soropositivos são tratados com coquetéis de drogas que inibem a multiplicação do vírus, mas não o eliminam do organismo
Notas:
1 – DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente, 1300-1800: Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 160
2 – DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente, 1300-1800: Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 160
3 – BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução: Ivone Benedetti. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013, p.114.
4 – DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente, 1300-1800: Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 172.
5 – DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente, 1300-1800: Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 173.
6 – Organização Mundial da Saúde
7 – Fenner F, Henderson D, Arita I, Jezek Z, Ladnyi ID. The history of smallpox and its spread around the world. In: Fenner F, Henderson D, Arita I, Jezek Z, Ladnyi ID, editors. Smallpox and its eradication. Geneva: WHO; 1988.
8 – Disponível em: https://unaids.org.br/
9 – Disponível em: https://unaids.org.br/
10 – Programa das Nações Unidas criado em 1996 e que tem a função de criar soluções e ajudar nações no combate à AIDS.
Diogo Tomaz é Graduado e Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, paleógrafo com foco em manuscritos do século XVI ao XVIII, professor da rede privada de Juiz de Fora e, quando tem tempo, ilustrador.
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