“A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam”.
CAMUS, Albert.
Se a arte é, de certa forma, o reflexo de uma temporalidade histórica em sua dimensão social, o que podemos dizer da arte que produzimos em uma sociedade politicamente doente em tempos de cólera?
Se a percepção da realidade é o substrato da criação do artista, como esse ator social inaugura novas discussões, estrutura novas linguagens e liberta a expressão de sua experimentação cercado de referências sórdidas e deletérias?
Nesse sentido, podemos perceber que, nessa cadeia de relações, os substratos artísticos que alimentam a inquietação do artista a partir de suas vivências, experiências (estéticas ou não), e na busca por elementos que atendam às suas potencialidades de experimentação foram contaminadas ou estão comprometidos.
Por isso, o isolamento não afasta só o artista e a sua obra de seu fruídor, mas também o afasta de um universo de possibilidades de encontrar esse substrato para sua criação.
É certo que o ineditismo dessa situação e a autorreflexão imposta pelo confinamento também alimentam, de certa forma, esse potencial criador. Mas nem sempre o impulso criativo é suficiente para superar esse obstáculo que o custo psicológico da quarentena apresenta para o artista. Me parece que sempre será possível encontrar elementos que inspirem a criação artística, seja dentro ou fora de situações extremas como vivemos. A questão é como isso afeta os artistas e suas obras em sua identidade.
Ao longo das últimas edições da Trama, as abordagens dos autores têm buscado refletir essa situação, especialmente de como percebemos que o modo como levamos nossas vidas até então não existe mais. Não queremos ser alarmistas, mas é verdade. Talvez ele volte a existir um dia, mas, no momento, nossas maneiras de nos relacionar, trabalhar e produzir arte, por exemplo, não são e não podem ser as mesmas. Eu sei que falando assim parece exagero, mas acredite, é isso mesmo. Nesse contexto, inúmeros contratos sociais foram suspensos por tempo indeterminado. Músicos não podem mais se apresentar em espaços culturais, bares, restaurantes e festas. Instrumentistas não podem se encontrar pessoalmente para seus ensaios, tampouco atrizes ou atores. Professores de desenho, pintura ou gravura não podem se encontrar com seus alunos em seus ateliês ou em escolas de arte. Ou seja, o mecanismo social e a metodologia de trabalho utilizada por esses artistas para gerar seus próprios recursos de subsistência foi retirado do jogo.
Essa ruptura afeta diretamente a classe artística e os trabalhadores da cultura em geral, porque existe toda uma estrutura e uma cadeia de demandas que simplesmente deixou de existir. Desde a criação de cartazes para shows, até a própria apresentação em si, existe um processo de trabalho que foi inviabilizado, e isso se repete em praticamente todas as áreas das artes.
Além disso, dentro dessa perspectiva, parece que a dificuldade habitual de um trabalhador da cultura em obter o retorno financeiro de seu trabalho, se agravou também por conta das consequências econômicas do confinamento. Com menos recursos financeiros circulando, aos poucos as prioridades começam a se organizar e se impor, e, infelizmente, a cultura não ocupa o mesmo patamar do que a alimentação e outros insumos nesse ambiente de incertezas. Entre comprar alimento, por exemplo, e pagar por um trabalho artístico, a primeira opção quase sempre é a escolha mais coerente.
Por outro lado, a necessidade de confinamento também impõe uma espécie de opressão criativa para alguns, como uma obrigatoriedade em encontrar soluções criativas para contornar o problema. Na realidade, apesar da relação solitária com sua obra no momento do ato criador, alguns colegas estão enfrentando um lapso criativo, com dificuldade para aguçar sua inquietação e produzir. Outros colegas se mostram um pouco mais resilientes e tentam encontrar alternativas para escoar sua produção, como apresentações em lives nas redes sociais, vendas de vouchers para adquirir suas obras após a quarentena ou criando conteúdo com o objetivo de engajar uma audiência capaz de financiar seu trabalho artístico.
Assim, me parece que as preocupações que rodeiam o artista nesse período de incertezas acabam impondo um esforço criativo muito maior para todos. Alguns se posicionam na linha de frente, oferecendo resistência à esse processo; outros sofrem as consequências do esgotamento criativo e não enxergam perspectivas em curto/médio prazo.
Entretanto, pessoalmente, creio que a maneira como o vírus impactou as artes transformou o modo como os artistas enxergam a própria produção, porque o golpe mais forte criou, precisamente, a inviabilização das estruturas e metodologias de trabalho habituais. E o ‘x’ da questão é não saber por quanto tempo estaremos na condição de prisioneiros de nossas próprias angústias, enquanto buscamos o caminho de volta para os dilemas da criação artística que faziam das feridas do mundo, cicatrizes de nossas lutas.
Frederico Lopes é Artista, educador, encadernador e escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco, Museu de Arte Murilo Mendes e é fundador da Bodoque Artes e ofícios e da Revista Trama.
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