*** Alerta de gatilho: o texto possui conteúdo sensível para portadores de transtornos de ansiedade e pânico.
Oh, meu Deus! Como é triste e difícil ter uma vida dupla. A vida que quero, direcionada para Vós, e outra vida que me obriga a aturar as ilusões efêmeras, passageiras, sem lógica deste mundo cruel que cada vez mais se distancia de Vós.
O pão tinha acabado de sair da chapa, e o queijo derretido criava fios delicados a cada contato de sua boca com a comida. O café com leite soltava vapores numa xícara em cima da mesa. Ele olhou fixamente para mim e começou a esboçar um sorriso quando levava a xícara à boca. Não queríamos perder a consulta em Belo Horizonte. De madrugada, minha mãe ligara para mim. Ele estava tendo uma convulsão. Justo hoje, dia da viagem, dia da consulta em que ele iria entrar definitivamente na fila do transplante de fígado. Encefalopatia. A doença o tomava de assalto. Problemas com sódio. Restrição de água. Paracentese na região abdominal. A cada punção, retirava quatro, cinco litros. E agora essa, bem no meio do nada, em uma lanchonete na beira da estrada, ele começava a agonizar com outra maldita convulsão. A imagem congelada de um sorriso ainda se alojou em seu rosto por alguns instantes e foi se transformando em algo incompreensível. Minha mãe levantou-se, tombou a cabeça dele um pouco para o lado para evitar que mordesse a língua, eu o segurava para ele não cair da cadeira. Ficamos um tempo assim olhando um para o outro com uma cara de bandido descoberto. O que fazer? Só nos restava seguir em frente, colocá-lo no carro, nem que fosse arrastado.
Bom-dia, Meu amado Jesus, meu Salvador e meu Redentor. Estive pensando, meu Deus, como sou teimoso em não aceitar o que trouxestes para mim na minha nova vida que com muito amor me destes para eu ter um tempo de pensar e tentar me perdoar por todos os meus pecados que pratiquei contra Vós; e, para o meu sofrimento, continuo praticando. Perdoai-me, Jesus, pois, apesar de tudo que passei, ainda tive a ousadia de tentar voltar a fazer tudo de novo que tanto fizestes para eu começar uma nova vida cheia de amor, cheia de perdão.
Amanhã é Natal. Nos últimos meses, ele tem piorado muito. Perdera dez quilos desde o começo da doença. Os efeitos da cirrose estão ficando cada vez mais devastadores. É difícil vê-lo assim amarrado nesta cama de hospital com os braços e as pernas imobilizados. Às vezes, olha-nos com uma fisionomia débil, com as órbitas oculares quase saltando dos olhos. Tivemos que amarrá-lo. É triste ver o meu amado assim, mas estava muito agitado. Não teve jeito. A encefalopatia atacou ferozmente o seu organismo. Amanhã é Natal e estamos aqui neste hospital, aguardando uma melhora que não vem nunca, uma salvação que não chega. Está lá atrás na fila do transplante. Vê se pode. Estamos torcendo para o fígado ficar contaminado pelo câncer. Só assim ele vira prioridade na fila. Vê se pode.
Senhor, meu Jesus, ajudai-me a ser mais humilde e aceitar com amor tudo que reservastes para mim. Fazei-me encontrar o caminho que leva até Vós; tirai de mim esta depressão, pois a depressão só quem a tem são os que não acreditam no imenso amor que sempre tendes dado a todos nós.
Aquele era um momento de raro encontro. Aproveitara o horário de almoço do expediente para visitá-los. Meu irmão, que segurara uma barra levando-o tendo convulsões até Belo Horizonte, tinha mais disponibilidade, era autônomo. Após a refeição, ele me chamou até o escritório. Conversávamos sobre o último livro de Chico Buarque. Ele pegou um pequeno objeto sobre a escrivaninha e mo entregou. Era um porta-canetas. Enquanto falava, observava cada centímetro do meu rosto. Queria se agarrar de alguma forma à minha memória. Meu filho, isso é para você usar no seu trabalho. Lembre-se de mim sempre que olhar para esse porta-canetas. E deu um sorriso perspicaz, de quem entende um ato de amor e permanência. Olhei para o objeto. Havia um relógio incrustado em sua estrutura. Entre um número e outro, um coração piscava incessantemente adornado pelas palavras “I Love You”.
Perdoai-me, Jesus, por causar tanto sofrimento a Vós. E continuei causando pela minha vida desregrada e pecaminosa na minha juventude. Como fui tolo e insensato no não sentir o Vosso amor durante todo este tempo. Perdoai-me, Senhor, por todas as minhas faltas que Vos fizeram sofrer.
Precisava se divertir um pouco. Sair da rotina. Aproveitou que aquele era um dia de folga. Subiu até o Morro do Cristo. Lá de cima, avistou a cidade e os pequenos pontos que se mexiam. Vidas que se cruzavam. Vidas distantes como naquele momento, longe do seu alcance. Seus olhos marejaram. Dois meses com câncer e nada de transplante. A metástase à espreita.
Boa-tarde, meu Jesus. Agora são 14h30. Senhor, meu Jesus, meu Pai, meu Irmão, meu Deus, meu Salvador, meu Redentor! Parece que não sairei desta, mas não façais com que os meus e eu sofram muito.
O banho o revigorara. Já havia raspado todo o pêlo na região do tórax e da barriga preparando-se para a cirurgia. Estavam no oitavo andar do Hospital das Clínicas. Agora só restava esperar. Pai, você está tremendo. É, meu filho. Você ainda tem aquele porta-canetas?
Nesse mesmo instante, surgiu o enfermeiro para levá-lo embora. Ele se deitou na maca e foi empurrado para um grande corredor com uma porta corrediça nos fundos. O filho o acompanhou até onde pôde. Quando a porta se abriu para a passagem da maca, um forte halo luminoso penetrou surdamente nos olhos do garoto, cegando-o por alguns instantes. Tudo ficou claro.
Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br
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