Diante de um mundo enfraquecido politica e economicamente por ocasião da pandemia da COVID-19, os levantes de ideais autoritários seguem em ritmo acelerado pelo mundo.
Todos os dias, podemos observar o aumento na intensidade de incidentes violentos em manifestações a favor ou contra governos no mundo, além da multiplicação de sites que promovem conteúdos neo-fascistas na internet, alguns, contando até com seus próprios influencers e estruturas robustas de financiamento. Amparados por uma extrema-direita cada vez mais organizada, e pelo crescente fundamentalismo religioso, esse movimento apresenta um panorama que nos revela que a disseminação e popularização das ideias nazi-fascistas são, na realidade, uma estratégia para estabelecer um projeto de permanência no poder de longa duração para a extrema direita ao redor do globo.
No final das contas, nada disso é novidade. Antes do final da segunda guerra, já havia a preocupação por parte dos aliados com a articulação de grupos que funcionassem como uma resistência fascista no pós guerra, sobretudo na Alemanha. Entretanto, após a derrocada desses regimes, muitos fascistas foram presos, mortos, suicidaram-se ou refugiaram-se fora da Europa. O que dificultou a organização de um movimento abertamente fascista. Além disso, o rigor na proibição de manifestações antidemocráticas também contribuiu para que o avanço das ideologias nazi-fascistas não se proliferassem novamente. (ALMEIDA, 2010).
Já na Itália, o processo de desinfestação fascista foi realizado pela Resistência Antifascista, e não pelos Aliados. Os partigianos se opunham à ocupação da Itália pela Alemanha Nazista e ao fascismo de Mussolini. O grupo de resistência era formado por homens e mulheres que compartilhavam de diferentes ideários políticos, o que fazia com que católicos, comunistas, liberais, socialistas, monarquistas e anarquistas, se unissem contra o inimigo comum, formando uma aliança heterogênea contra o fascismo (ALMEIDA, 2010). E é nesse ponto que vamos falar de arte e resistência.
Diante desse território onde as disputas de poder ocorrem a partir de concepções ideológicas que ocasionaram as guerras ao longo do século XX, as estratégias de dominação voltam a passar pelas concepções artísticas. O capital cultural é regularmente utilizado como ferramenta de construção de narrativas visando o fortalecimento de determinados movimentos políticos, nesse caso, buscando sempre o engajamento social para as pautas extremistas. Foi assim na produção de cartazes na união soviética, na propaganda nazista e nos próprios movimentos de resistência. Em linhas gerais, salvo raríssimas excessões, referências à moral religiosa e aos bons costumes do cristianismo ocidental, tratam de emprestar a roupagem da bondade e da justiça na criação desses produtos culturais.
Sendo assim, podemos conjecturar que o aspecto sensorial sinestésico das artes, associado à sua capacidade de comunicar ideias através de simbologias, seja um dos principais fatores para sua efetividade na conversão de seguidores para as mais diversas causas. Inclusive, em muitos níveis, nossas noções de moralidade e ética são guiadas por nossos sensos estéticos, o que estimula a organização de grupos em torno de temáticas que dialogam com suas identidades particulares.
Talvez por isso, a resistência antifascista na Itália tenha feito com que a música Bella Ciao se tornasse um símbolo de luta e resistência, não só contra o fascismo italiano, mas contra a ascensão de regimes autoritários ao redor do globo. Muito embora sua origem não seja exatamente confirmada como um hino de resistência, especula-se que ela tenha sido composta como um canto de trabalho por camponeses italianos no final do século XIX. Entretanto, sua melodia foi utilizada como base para criação de uma canção de protesto contra a primeira guerra mundial, o que contribuiu para que os arquétipos de resistência fossem plenamente encontrados na sua utilização pelos partigianos.
Já no tempo em que vivemos, diante de um espectro político cada vez mais polarizado, em uma arena onde as disputas ideológicas acontecem através de discussões políticas cada vez mais adoecidas, nossos símbolos de resistência foram pulverizados em memes nas redes sociais. Acompanhamos o surgimento de estados de exceção e ataques diários à democracia, sobretudo no Brasil, anestesiados por memes de gatinho, rindo de montagens e se abstendo de buscar na arte os elementos capazes de gerar o engajamento social que fará resistência à esse levante. Assistimos apáticos ao crescimento do fascismo, repaginado pelas estruturas da pós-modernidade e amparado no fundamentalismo religioso e no discurso de ódio, que dizem já ter até gabinete para despachar…
Nesse contexto, na semana da revolução dos Cravos, do dia 25 de abril de 1974, (que foi responsável por colocar fim ao mais longo regime totalitário na Europa Ocidental durante o século XX – a Ditadura Nacional e o Salazarismo, que se estendeu por um período de 48 anos), enquanto Portugal e Itália comemoram a vitória contra o autoritarismo, o máximo que o brasileiro faz é acessar a Netflix, e ver a cena em que o Professor canta Bella Ciao com Berlim, em La Casa de Papel. Sem saber o que ela de fato representa. Sem perceber o chamado à resistência que bate à porta todas as vezes que valores antí-democráticos são pregados abertamente pelo Presidente da República. Diante dessa situação de perigo iminente, o brasileiro canta Bella Ciao na versão tecnobrega e faz um tweet reclamando da vida.
Frederico Lopes é Artista, educador, encadernador e escritor. Trabalha no Memorial da República Presidente Itamar Franco, Museu de Arte Murilo Mendes e é fundador da Bodoque Artes e ofícios e da Revista Trama.
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