África, misteriosa África
Magia, no rufar dos seus tambores se fez reinar
Raiz que se alastrou, por esse imenso Brasil
Terra dos santos que ela não viu
[Acadêmicos do Grande Rio, (1994),
Os Santos que a África não viu G.R.E.S.]
Logo no começo do livro “Fogo no Mato – A ciência encantada das macumbas”[1], de Luiz Antônio Simas e Luiz de Rufino, esse samba-enredo da Acadêmicos do Grande Rio de 1994 – “Os Santos que a África não viu” – é colocado como ponto de início para os autores construírem sua busca pelos “santos que aqui baixam”.
E os autores seguem pontuando, em cada canto, cada ser encantado e ancestral que aqui “baixa” em nosso país, fruto do “cruzo” de várias culturas e religiões (eles preferem uso desse termo a “sincretismo”). Sabemos que a contribuição das culturas africanas, indígenas e europeias na religiosidade do povo brasileiro é inquestionável. Em maior ou menor grau, isso é proveniente do próprio desenvolvimento histórico da formação do nosso povo.
Fotografar a fé, para mim, se tornou um caminho inevitável desde quando me posicionei como fotógrafa e umbandista no mundo. Coincidentemente ou não, as duas coisas aconteceram quase na mesma época, no início dos anos de 2010. A busca por imagens que revelassem esse “cruzo”, tanto dentro de espaços de terreiros como fora deles, é um caminho que tenho feito, então, com olhar de alguém de dentro da religião. Este ensaio é um registro desta fé que me atravessa.
A fotografia retornou à minha vida através de um reencontro com uma velha câmera analógica do meu pai, uma Zenit 12XP, em 2012. Minha trajetória com a ela sempre foi inconstante, por vários motivos; lembro de ter tentado entender fotometria, na dinâmica entre ISO, velocidade e abertura de diafragma, quando mais nova, e não ter conseguido. Já com quase 30 anos, eu retomei e até que enfim, consegui me apropriar da técnica – primeiro na analógica, depois na digital.
Um pouco antes, mais ou menos nessa mesma época, eu me reconectei com a religião que eu pratico hoje em dia: a Umbanda. Lembro de ter participado pela primeira vez de uma “gira” (sessão onde se manifestam os espíritos nos praticantes da religião) quando eu tinha entre 10 ou 11 anos. A Umbanda é a religião praticada por parte da minha família, e isso fez eu frequentar, então, o terreiro que minha mãe e tios frequentam, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, desde muito nova.
Ervas, pontos cantados e riscados, tambores e atabaques, defumações, pemba, fundanga, guias, festas, comidas e roupas de santo, velas, pito, cachimbo, marafo, doces, padês… Cresci participando disso tudo e vendo minha mãe envolvida em todos esses rituais e objetos sagrados, típicos da Umbanda.
Quais os santos que África não viu? Certamente, os que nós vemos em todos os espaços sagrados, das religiões de matriz africana; e isso não se limita ao terreiro, roça ou barracão. Praias, matas, cachoeiras, pedreiras, ruas, encruzas, calunga pequena, em festas profanas de santos e de orixás: em tudo, a macumba está…
Os santos que por aqui baixam praticaram o cruzo, são macumbeiros, arrastam multidões em suas companhias, vadeiam nos sambas de roda, nas capoeiras, riem nos versos improvisados, bebem cerveja, correm atrás de doce, festejam a virada do ano com batuques na beira do mar […] São santos, orixás, encantados, mestres ajuremados, compadres, comadres, eguns da diáspora, fiéis amigos, malungos, apostadores do mesmo jogo, homens e mulheres de corpo fechado.
(Simas & Ruffino. Fogo no mato – A ciência encantada das macumbas, ed Mórula Editorial. Edição do Kindle (2019).
Seja no silêncio da reza solitária à beira do mar ou na aglomeração para louvar Jorge-Ogum numa Igreja católica; nos sambas de enredo e desfiles das escolas de samba; nas esquinas das grandes cidades e na linha do trem que leva o trabalhador; nas imagens de santos católicos sincretizados em orixás africanos, nos patuás, nas rezas e festas sagradas e profanas da cidade.
Tentar traduzir essa diversidade de manifestações ancestrais e sagradas, é uma busca que teve um início, porém, certamente não terá um meio e nem um fim. É um projeto e um processo, que venho realizando desde que mirei minha vida e minha câmera para a fé.
As fotografias desse registro documental não se restringem apenas a fotos de terreiros de Umbanda. Elas se misturam em outros espaços, como o Candomblé e Igreja Católica. Abarca também outros espaços sagrados e profanos onde a fé e a religiosidade são percebidas, incluindo os momentos de luta pela sobrevivência aos ataques dos intolerantes religiosos – como é o caso da já importante Caminhada pela Liberdade Religiosa, que acontece todo ano na orla de Copacabana.
‘Fé Urbana’ são fotos que perpassam por tudo isso. São recortes e fragmentos da religiosidade carioca, em sua maioria oriundas dos subúrbios. Um amálgama desta religiosidade composta por múltiplos territórios, personas, caminhos e narrativas. A universalidade da fé revelada na singularidade de quem a professa.
[1] Simas, Luiz Antonio; Rufino, Luiz, Fogo no mato – A ciência encantada das macumbas, ed. Mórula Editorial. Edição do Kindle.
Bárbara Dias é fotógrafa independente, com base no Rio de Janeiro. Atua na área de fotojornalismo e fotografia documental. Fotografa, desde 2014, temas relacionados a direitos humanos e movimentos sociais, e se interessa também por manifestações culturais, populações tradicionais e religiosidade brasileira.
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