A expressão “amor livre” me soa estranha. Amplamente utilizada para designar relacionamentos românticos não monogâmicos, ela mexe muito com os meus pensamentos – mesmo porque esse chamado “amor livre” (em tradução, a poligamia) é o modelo de relacionamento que eu passei a adotar depois de percebê-lo como o mais viável para que a minha personalidade pudesse se encaixar em vivências românticas mais saudáveis e felizes.
Pessoalmente, essa expressão jamais sai da minha boca para definir o meu relacionamento – ainda que ele se enquadre na noção que a maioria das pessoas relaciona a esse conjunto de palavras. Acontece que toda vez que eu penso em “amor livre”, me surgem questionamentos:
Existe amor sem liberdade?
‘Amor livre’ não seria uma expressão redundante?
O que se passa na cabeça de quem diz que ama e enxerga seu amor como uma prisão?
Eu entendo que a ideia seja falar sobre a possibilidade ou não de se relacionar com várias pessoas ao mesmo tempo – a oposição entre ser limitada a se relacionar com uma única pessoa (o “amor preso”) ou ter possibilidades ilimitadas de pessoas para se relacionar ao mesmo tempo (o “amor livre”). Porém, não concordo que a percepção de liberdade nos relacionamentos deva se basear nas práticas escolhidas voluntariamente pelo próprio sujeito; nesse contexto, a oposição entre liberdade e prisão não me parece sustentável nem mesmo de um ponto de vista estritamente semântico. Essa oposição, inclusive, é o principal motivo que eu vejo para a interpretação errônea do que é a poligamia (ou “amor livre”), sempre pensada enquanto um relacionamento de desapego e alvo de comentários como:
“Se quer pegar geral, fica solteira!”
“Nossa, acho tão evoluído, mas não consigo.”
“Ah, eu teria ciúmes.”
Se você já disse ou diria alguma dessas frases, eu tenho umas novidades para te contar. A primeira delas é que relacionamentos poligâmicos não têm absolutamente nada a ver com desapego (meu casamento que o diga); a poligamia é apenas mais um dos muitos contratos interpessoais que você pode assumir num relacionamento romântico. E se ela é só uma entre tantas possibilidades, a segunda novidade é que não tem nada de evoluído em ser poligâmico; é só uma questão de escolher o que é mais ou menos confortável para você, de acordo com as suas necessidades. A terceira novidade é que gente poligâmica também sente ciúmes; a poligamia só é uma modalidade de relacionamento na qual a gente se propõe a lidar com esses (e outros) sentimentos de forma diferente, olhando para dentro de si, e com confiança no outro. E é essa confiança que delimita que o amor pode ser livre independente do modelo de relacionamento que você tenha. Juro.
Apesar de me incomodar a expressão e considerar errônea a correlação imediata que se faz entre o amor livre e a poligamia, é possível entender a origem dessa inferência automática a partir da observação de casais mono e poligâmicos em um mesmo contexto social. Devido à própria falta de conhecimento das pessoas em volta e do preconceito, relacionamentos poligâmicos estáveis costumam ser assumidos publicamente bem mais tarde do que os monogâmicos; e nessa altura do campeonato, as pessoas envolvidas já construíram intimidades, enfrentaram medos e inseguranças que nem imaginavam ter, testaram diversos limites pessoais, fizeram as pazes com suas limitações e insuficiências, discutiram e rediscutiram o contrato do relacionamento e, claro, já pensaram muitas vezes sobre “o que vamos dizer ao mundo para que não sejamos invalidados?”. Todo esse processo requer um nível altíssimo de confiança e honestidade; assim que, enquanto casais monogâmicos passam por todo esse início de forma pública, casais poligâmicos já se apresentam à sociedade com suas pontes construídas, passando a sensação de que a “liberdade” (de não ficar com apenas uma pessoa) e a confiança mútua são atributos paralelos da relação, e não interdependentes. Mas a confiança não é o ponto de partida do amor livre; ela não é a matéria prima, mas sim o meio de produção. O ponto de partida, a matéria prima, é a honestidade. E ela pode estar presente nos dois modelos extremos, desde o relacionamento monogâmico mais fechado até o poligâmico mais aberto.
A honestidade não é simples (e não é todo mundo que quer se comprometer com ela). Ela é um exercício de falar coisas que, às vezes, são difíceis de dizer e de serem ouvidas. Coisas que podem ferir, desestabilizar esse alguém sem quem você não consegue imaginar os próximos meses, os próximos anos, ou o resto da sua vida. Coisas que, por pura empatia, ou por medo de atrito, escolhemos não dizer – e quando não dizemos, na maioria das vezes, é porque apresentam riscos à noção de que estaremos juntas e felizes amanhã. Assim, a honestidade requer a coragem para navegar esse terreno instável. E requer, também, a capacidade de perdoar, a si e ao outro.
Essa honestidade, unida ao cuidado e ao carinho geralmente presentes nos relacionamentos românticos, dá origem à relação de confiança. E o curioso é que a confiança só tende a retroalimentar a honestidade; ora, impossível ser sincera, honesta, quando o sentimento é de que tudo vai desabar na primeira discordância (já estive aí, não recomendo). Já quando você passa por situações difíceis e se permite confiar, essas situações passam a ser mais navegáveis. Mais tranquilas. Menos assustadoras. E, consequentemente, menos difíceis.
Falando assim, tudo isso parece um ciclo fluido, uma sequência que transcorre feito aquelas filas de dominó, que a gente empurra o primeiro e todos caem em sincronia. Mas é importante lembrar que confiar é sempre uma escolha. Escolher confiar é um comprometimento que, assim como a honestidade, nem todo mundo está disposto a fazer; isso tendo em mente que a desconfiança é, com certeza, um dos maiores limitadores da ação humana. Com confiança, é possível aumentar o seu raio de ação, e conquistar a liberdade; essa, que não consiste apenas na possibilidade de se relacionar com outras pessoas – e pode nunca significar isso, para muita gente -, mas a liberdade real. Aquela que nos permite ter experiências; trazer outras referências, novas; cometer erros; e ainda assim, ter alguém para quem voltar.
A liberdade real em um relacionamento está sempre acompanhada da confiança plena, que se desenvolve no dia a dia, na honestidade e na independência dos sujeitos. No saber que ‘eu não preciso estar com você, você não precisa estar comigo; mas de todas as possibilidades que nós temos, escolhemos a de estarmos juntas nesse momento’. No reconhecer que ‘somos iguais e podemos tudo, juntas ou separadas’. E quando pensar que queremos juntas, é porque realmente queremos juntas – e que podemos querer separadas.
A nossa condição humana, porém, nos restringe, e não permite que jamais atinjamos a perfeição. Assim, a liberdade real nunca é total, porque somos humanos, com limitações. Todo mundo sente coisas que não quer sentir. Diz ou faz coisas impulsivamente, e se arrepende depois. Tudo que envolve pessoas tem problemas. Os três parágrafos anteriores desse texto soam como um mar de rosas, uma situação ideal, o que não é a realidade de nenhum relacionamento. Pessoas discordam, entendem errado, são injustas, são egoístas, são sensíveis a coisas estúpidas, mudam de opinião, são naturalmente incoerentes, projetam expectativas, ideais, medos, inseguranças – o que quer dizer que tudo são tentativas. A condição humana transforma todo relacionamento, de qualquer natureza, inclusive os românticos, em um exercício constante de demonstrar paciência, de crescer e fazer crescer, de deixar entrar, de encontrar a melhor forma para ser honesta e dizer coisas ruins de se ouvir, de compreender, de perdoar. Se dispor a exercitá-los configura o amor.
“O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade.”
(1 Coríntios 13:4-6)
O amor se alegra com a verdade. É a partir dela que ele se torna livre. E a liberdade é fator motriz da humanidade. Ela é o mote de todos os protestos, reivindicações, lutas. Em tempos de quarentena, pessoas que nunca saem de casa estão incomodadas com a impossibilidade, a falta de liberdade para saírem. Em todos os âmbitos, ela é o destino daqueles que crescem: liberdade financeira, de horários, de fazer o que quiser quando quiser sem ninguém para regular. E por que não conceder também ao amor a possibilidade de ser livre?
O passo a passo é simples; a prática, nem tanto. Mas a ideia é tomar os meios de produção: tomar a confiança para nós mesmas, alimentá-la com honestidade, para que possamos ser donas da liberdade que produzimos. Livre é o amor que conhece a verdade.
“Conheceis a verdade, e a verdade vos libertará”
(João 8:32)
Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atua como Social Media na Peregrina Digital, assistente de edição na Trama e escritora nas horas vagas.
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“Mas a ideia é tomar os meios de produção” (: