O Beijo, um Universo

por: Marcus Cardoso

O beijo. Nada tão íntimo quanto essa troca: mucosa que se entranha em mucosa que acaricia mucosa que devora fundo mucosa. Sem mais nada ao redor: só línguas em abraços, como âncoras precisas, como bolhas navegantes. E a representação disso, desse inominável, desse foge-palavras, dessa imprecisão, é sempre difícil: como transmutar o físico em signo?

Tolusse-Lautrec, tenta. Chega numa cena toda sublime: consegue fazer emergir calor do azul: como se confirmasse Camões no seu “amor é fogo que arde sem se ver”. No contrato pelo contato, no olho fechado durante o ato, forçando o afloramento dos outros sentidos, forçando o desligamento visual do mundo: como se nada mais importasse, a não ser aquilo: o beijo. As duas prostitutas de Lautrec pintam suave a relação. Nunca saberemos se é um beijo de boa noite ou uma preliminar. Talvez porque o sentido de tudo não importa: só a ligação é que interessa.

“Na cama, o beijo”, de Toulouse-Lautrec.

Roland Barthes diz que, na fotografia, além da composição, é necessário
reparar no que nos punge. E isso não se difere muito do Berger, perguntando o que nos faz entrar num quadro: por que detalhe se inicia o furacão ou, quem sabe, a epifania? No beijo do Klimt, aquilo que punge são as mãos da personagem masculina, se apoiando no rosto que é beijado como se fosse um presente valioso, que a qualquer momento pode se partir. Tocar com os lábios, acariciar com a saliva, transpor amor pelo palato. Teu beijo tem o gosto do infinito. E as mãos da personagem beijada, que seguram a mão segura do beijo, é o que nos chama logo em sequência: deve ser possível sentir o cheiro somente através do toque. Não duvidaria nada que o tempo está parado para os personagens desta tela desde sua feitura: e eles não pretender sair desse átimo tão cedo.

“O beijo”, de Gustav Klimt.

É como se, durante o beijo, se instaurasse sempre uma disputa entre a
contagem do tempo e o resto da existência. É preciso viver, voltar às
burocracias da vida, ao trabalho, a você mesmo. Mas o tempo da existência é um só: o tempo do beijo: a única solução seria conseguir capturar o tempo e desfiá-lo até minuto virar imensidão. Essa é, talvez, a falha maior do ser
humano: sua impossibilidade de controlar o tempo. A tônica da inventividade humana, da sua criação de tecnologia, se tangencia por aí. Como diz Maurício Pereira, através do duo Os Mulheres Negras, “Microondas, avião, cumpram a sua função e acalmem um coração que sangra”. (Podemos simples juntar ao microondas e ao avião, o Facebook, o Instagram, a TV a cabo e a AirFryer da Polishop). Tudo isso é resposta à luta do homem contra o tempo. Chagall em seu beijo, nos deixa claro: beijar é flutuar e não querer ir embora. É tentar acertar o ar, errar, e então respirar alguém sem saber parar. Enfim, Chagall encontra significado no disforme, afinal o corpo pede. Se fosse possível, nos desentranharíamos do corpo, deixaríamos os ossos de lado e nos constituiríamos apenas de lábios e calores, assim como esse quadro-quartzo.

“O aniversário”, de Marc Chagall.

E em Magritte, temos a despersonalização: os panos entre os lábios, a
princípio, são assustadores. Porém, atravessando a barreira do impacto
primeiro, temos a ideia de que eles não sufocam, mas se beijam. É, enfim, o
beijo derradeiro antes da chegada do carrasco. É o amor sentado à beira da
queda, chacoalhando os pés enquanto contempla a vida vivida até o fim. O
limite após o limite. E não há barreira que impeça o beijo: como Legos de pele, uma boca encaixa outra. Como ímãs de carne, uma língua chama a outra. Não existe mais eu, você, ele, a cama, o vaso, o terno, a máquina: tudo é beijo, tudo é troca, tudo é um: a sensação contínua de laço.

“Os Amantes”, de Rene Magritte.

Enfim, Regards Coupables, com suas obras que focam e desconsideram
o que não é detalhe, apagam o que devemos preencher: o que, no corpo, não é lábio, não merece ser desenhado. A representação direta do baluarte de tudo. O lábio faminto, que devora os vasos dilatados da boca, enquanto iniciam seu processo de quentura. O odor do beijo emana. E fica. A lentidão devastadora desse beijo salta à imagem. Um universo complexo numa casca
de nós.

”Beijo”, de Regards Coupables

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DE IMAGENS
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2017.
BERGER, John. Ways of seeing. United Kingdom: Penguim Books, 2008.
CHAGALL, Marc. Birth (O Aniversário). 1915, óleo sobre cartão.
KLIMT, Gustav. Der Kuss (O Beijo). 1907-1908, óleo e folha de ouro sobre
tela.
MAGRITTE, Rene. Les Amants (Os Amantes). 1928, óleo sobre cartão.
Os Mulheres Negras. Música serve pra isso. São Paulo: WEA, 1990
Regards Coupables. Kiss. 2018, instagram. Disponível em:
https://www.instagram.com/regards_coupables/?hl=pt-br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *