por: Robert Anthony
Atrasado para algum compromisso, juntei minhas coisas rapidamente e saí apressado. Enquanto andava, desembolava o emaranhado fio do fone de ouvido. Concluída essa tarefa, coloquei os fones, abri meu aplicativo de música, selecionei uma playlist qualquer e segui ouvindo por todo meu percurso. Mais tarde, já em casa, uma melodia tocava em minha cabeça repetidamente. Lembrei que era uma das músicas que havia escutado. No intuito de ouvi-la de novo, procurei nos registros desse aplicativo alguma referência que pudesse me salvar do martírio: que música era aquela que não saía da minha cabeça?
Desisti. Absorto nesse acontecimento, comecei a refletir que talvez eu não ouvisse aquela música novamente, e que talvez eu não tivesse dado a devida atenção à ela. Na verdade, acho que não tenho dado a devida atenção nenhuma das vezes. Pensei: qual foi a última vez que parei para ouvir uma música? Assim, do primeiro ao último segundo. Do silêncio que antecede ao silêncio que sucede.
Isso tudo me levou a pensar que alguns séculos atrás, antes da invenção da gravação sonora, ir a um concerto era, muitas vezes, a única oportunidade de se ouvir uma determinada música. Uma música, por mais simples que ela seja, é um evento complexo. Tudo bem, não fomos educados para uma escuta atenta, e talvez tenhamos que retomar alguns passos. Um ponto de partida possível está no conceito de “modos de escuta”, de Pierre Schaeffer. Descrito em seu livro “Tratado dos Objetos Musicais”, o pesquisador e compositor francês, apresenta estes modos de escuta em quatro: escutar, ouvir, entender e compreender.
Para ficar mais claro, nas palavras de Virgínia Flores:
“Escutar é, por intermédio do som, procurar sua fonte, sua causa, é tratar o som como índice desta fonte (concreto-objetivo). Ouvir é ser tocado pelos sons passivamente, sem intenção de escutar ou de compreender, é o nível mais bruto da escuta (concreto-subjetivo). Entender é manifestar uma intenção de escuta, selecionar dentro daquilo que escutamos (abstrato-subjetivo). Compreender é discernir um sentido veiculado por signos, é tratar o som como um signo (abstrato-objetivo)”.
Percebi que, naquele momento, quando saí pela rua ouvindo uma faixa aleatória da minha playlist, me faltou o “entender” e o “compreender”. No meu descuido, deixei escapar o silêncio, deixei de tratá-lo – parafraseando Murray Schaffer – como um repositório, pronto para receber uma música. Quando paramos tudo o que estamos fazendo para ouvir, estamos direcionando nossa intenção de escuta. Paralelamente, atribuimos sentidos para o que acabamos de ouvir.
Sendo audacioso, ainda arriscaria um pouco mais. Talvez isso ilustre como estou lidando com tudo ao meu redor, vendo tudo passar, indo atrás das fontes de qualquer coisa, sem procurar “entender” e “compreender”. Ou seja, sem observar aquilo que esta se passando no presente momento, qual minha intenção e qual o sentido disso. Alinhar o nosso tempo ao tempo do mundo é primordial para começarmos a nos encontrar. E, como a música é necessariamente presa ao tempo, não estar sincronizado a ela é deixá-la passar, para sempre, sem ter dado a devida atenção.
Referências:
SCHAEFFER, Pierre. Tratado dos Objetos Musicais (I. Martinazzo, Tran.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993.
FLÔRES, Virgínia. O cinema: uma arte sonora. São Paulo: ANNABLUME, 2013.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. Unesp, 1992.