Inventário do Causo

Há algum tempo me pergunto sobre as coisas que dão vida às palavras no interior. Vão surgindo assim como um olho d ́água, vem de dentro: é de onde a palavra brota. A paisagem é mais que favorável, seja para inventação ou fazer manutenção do causo. Tudo tem um potencial para ser assombrado ou aumentado de tamanho. O “diz que…” é uma forma de dizer que existiu ou aconteceu sem dizer que você estava lá para confirmar tal causo, e para dar margem àquele que ouviu dizer que mais lá pra frente. É o mesmo que diz Regina Machado-1 sobre o lugar da possibilidade do que não existe existir: “Este “lá” para onde a pessoa se transporta é o lugar da imaginação com possibilidade criadora e integrativa do homem.”.

Diz que um rapaz queria casar com uma moça, aí a moça não ligava pra ele de jeito nenhum. Ai eles falam que o preto velho falou:

— Oh! Cê vai apanhar um fiapo de cabelo dela na hora que ela estiver estendendo roupa lá na cerca e traz que eu vou benzer procê. — Apitando aquele cachimbo dele e dando aquelas risadas.

Aí eles falam que ele pegou o fiapo de cabelo, levou e deu o preto velho. O preto velho benzeu e era de égua. Na hora que ele chegou em casa a égua veio rinchando pro lado dele-2.

A tradição oral vem em forma de conto, cantiga, brincadeira, causo e vai. É inventada ou reproduzida, podendo ser os dois ao mesmo tempo. É coisa antiga que vem passando, mas não pense que é num disse e me disse. Tudo é lançado com vida, com a verdade de encantar. É presente.

Olhando para o fim do mundo, lá onde o mato cobre quase tudo eu percebo que a vida se assanha com a arte, se fazendo presente na cultura dos símbolos, nos ritos e na codificação do cotidiano. Lembro-me bem do dia em que ouvi a palavra crianceira. Eu estava brincando de roda, após cantarolar: Adeus pavão dourado! E uma colega me solta lá do fundo a mais cabível definição para aquele momento. Foi a melhor aula-3 que tive.

Falo da possiblidade de se permitir brincar, de não se acanhar com a pergunta que vem de dentro e que não parece fazer o menor sentido aos olhos do mundo externo. Um mundo adultíssimo! Por falar em brincar, Lydia Hortélio-4 afirmou a pouco que o Brasil está na zona rural. Hei de concordar e assumir esse partido: o velho brinca e o novo também. Os dois pegam um graveto e vão andando riscando a poeira. O desenho vai surgindo e seguindo. É um movimento interno e externo. Mas que raio de trem é esse que tem no interior que não se tem em outro canto nenhum?

Andando um pouco por outras bandas – aqui me referindo a São Paulo – fui notando que tudo era igual; o céu era o mesmo; o chão era o mesmo; o canto do bem-te-vi era o mesmo e a resposta do outro bem-te-vi também. O que era diferente era a gente, já não mais encantada com um avião que corta o céu. E olha que ele passa baixinho! Não que essa gente não tenha mais encantamento, mas ele não se encontra mais nesses detalhes. Ta certo, tem aos montes. O barulho virou poluição sonora e com razão, eu acho. Mas eu ainda prefiro a reação de correr para o quintal ou para onde der para ver o avião passar. Acontece que agora eu já não corro mais ou fico acenando para o alto. Contenho-me, finjo que está tudo certo. Olha bem que ruim.

O que insinuo é que a tradição oral, assim como qualquer outro aspecto cultural de um povo, nasce das pequenas configurações. O material e o imaterial nesse convívio dizem sobre as inquietudes e as acomodações, os objetos são artefatos cheios de estórias e o ato de acordar com o cacarejo do galo é um movimento de ação conjunta que alimenta o encantamento da tradição rural, faz viva a palavra no interior: cria causo.

O causo ou conto popular para todos nós é o primeiro leite intelectual, uma definição muito esmiuçada por Câmara Cascudo-5. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões e julgamentos. É o inventário da memória que jorra informação de todo e qualquer tipo. O causo inventa sacrafuncho, mas também entrega a chave para abrir o que for.

Pois pense numa velha que esconde alguma coisa na trama da casa, bem ali entre as telhas, os caibros e as ripas. De um jeito que ao espichar os braços se alcança com facilidade, mas de modo que menino algum consegue alcançar. Pode ser remédio ou veneno. Ou então no menino que vem passando correndo, mas breca na calçada aonde a parentada se reúne. Com a mão suja de poeira abraça uma a uma que, diferente das suas, já estão com os sulcos da idade.

— Bença! — Pede o menino numa voz afoita.

— Deus abençoe! — Responde cada um que logo já emendam outra prosa.

A cultura oral ensina sobre percepção, contato e encontro. De tanto ouvir falar se aprende quando vai chover pelo canto do passarinho. Esse atrevimento de ter uma contação para cada comportamento, tanto do homem quanto da natureza, enrique o imaginário por trás das coisas, se torna ciência e sabedoria para levar uma vida. A ludicidade é incandescente, é a engrenagem da coisa toda.

Em determinado momento de seu livro, Regina Machado nos convida a imaginarmos uma casa com muitas janelas, nelas a possiblidade de nos debruçarmos e observamos a paisagem recordada por cada uma delas. Há de se observar ainda a moldura da janela escolhida. A metáfora construída aponta para as abordagens teóricas e poéticas que optamos por fazer. Melhor que isso, ilustra quais perguntas temos sobre essas janelas e suas paisagens. Trata das inquietações como um material genuíno e instiga a imaginação.

Comecei a imaginar uma casa que não me pertencia. Era muito grande parecia uma fazenda. Eis que me tomo por momento e recordo-me da minha casa, adentro e tento observar tudo o que posso, nos menores detalhes possíveis. É um saudoso exercício.

Ouvi muito sobre o vento estar triste. Era notícia ruim chegando. Nem sempre ela chegava, mas a gente ficava esperando. Mais do que o isomorfismo do salgueiro que também pode ser chorão, citado por Arnheim-6, é dar forma triste ao que nem tem forma. É notar o efeito sutil que o vento produz nas copas das árvores ou na roupa no varal. Se conseguir, verá que esse tipo de vento é mesmo triste.


Túlio é Historiador e arte-educador. Se dedica ao estudo dos processos que envolvem a mediação cultural em espaços de arte e cultura. Atualmente é mestrando em Artes Visuais – Teoria, ensino e aprendizagem – pela Escola de Comunicação e Artes da USP.


Notas

1- MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta. São Paulo: Editora Revira Volta, 2015, p. 43.
2- Causo recolhido no distrito de Itamuri, Minas Gerais, em 2016 para compor meu trabalho de conclusão de curso. 1 MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta. São Paulo: Editora Revira Volta, 2015, p. 43.

3- Cito uma das aulas da disciplina Teoria, Ensino e Aprendizagem ministrada por Regina Machado no Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação e Artes da USP.
4- Vídeo-depoimento de Lydia Hortélio para o Itaú Cultural (Ocupação 2019).
5- CASCUDO, Luís da Câmara. Prefácio. In: Contos tradicionais do Brasil. 20. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

6- ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Cengage Learning, 2008.

Referências bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 20. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta. São Paulo: Editora Revira Volta, 2015.


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