Cão Maior – Um Breve Ensaio Sobre Nós

Lar: lugar de morar. Onde moram as pessoas? Onde moram as ideias das pessoas? Seria possível não morar, ou morar, em si mesmo? Lar é um espaço. Um espaço que ocupamos de uma forma nossa, com coisas nossas. As coisas também moram? Se moram, onde moram? Onde moram os pensamentos, as vontades, o querer? Essas casas, se existirem, têm algum nome? Por exemplo: estrelas moram em constelações, que habitam galáxias, que abrigam planetas também, que moram, como todas as outras coisas, num espaço gigantesco, que nem se sabe ao certo onde começa ou acaba – ou se acaba – chamado universo. 

97% dos átomos que nos fazem pessoas, o que significa algo muito perto da totalidade, são os mesmos que fazem das estrelas, estrelas. O que isso pode significar em termos práticos? Somos bolas de gás e luz própria? Não, não somos. Mas somos astros que brilham no universo de outras pessoas.  Somos satélites que orbitam outros planetas, aos quais damos nomes como amigo, irmão, mãe, pai, avós e tantos outros. Alguns se sentem como a Terra, que tem apenas uma lua como satélite. Uma companhia que está sempre por perto, rodeando e influenciando tudo que faz parte do que somos. Outras pessoas são como Júpiter, um gigante rodeado por 69 luas. São pessoas enormes, não necessariamente em estatura, mas em atributos que são tão atraentes, que fazem sua órbita lotar de presença. Pelo que se vê, astros, planetas e pessoas se relacionam, se ligam, se complementam. 

Daqui debaixo, no limite do que conseguimos saber, imaginamos o Sol como uma fonte infindável de luz e calor. Por vezes chegamos a pensar que seja ele o astro maior, a estrela mais brilhante e única. A verdade é que o número de estrelas maiores do que “o Astro Rei” não é dos menores, e existem estrelas que fazem o sol parecer uma lâmpada acesa durante a luz do dia. VY Cannis Majoris é a maior estrela de todo o universo, que se tem conhecimento até agora. Distante de nós 5 mil anos-luz, habita a constelação de Cão Maior.  Talvez seja possível afirmar que nunca veremos VY Cannis Majoris de perto, mas isso não muda o fato de que, além do que a vista alcança, existem grandezas inimagináveis. A estrela mais brilhante atende pelo nome de LBV 1806-20 – uma estrela 38 milhões de vezes mais brilhante que o Sol. Não é difícil imaginar a razão pela qual as pessoas que se destacam muito por suas habilidades, feitos e “brilho” são chamadas de “super estrelas”.

Pense por apenas alguns segundos e tente enumerar as pessoas que você conhece e admira. Liste os motivos pelos quais você possui essa admiração. Tente traçar um paralelo entre as pessoas que você conhece e que te admiram. Consegue enxergar o mesmo que elas enxergam em você? Por um acaso, alguma pessoa dessas que você admira, não são admiradas por pessoas que admiram você?  Há aqui uma questão que ainda não levamos em consideração: a relatividade. 

O brilho do sol que vemos não é o brilho do sol real. O brilho tem relação com o que conseguimos observar daqui, já a luminosidade é o brilho real. Existem dois elementos semelhantes em termos, mas diferentes, distintos, entre si: o brilho e a luminosidade. Estamos falando de luz, de emissão de luz em potências não iguais. Estamos falando de projeção. Você provavelmente passou, ou conhece alguém que passou, por uma situação complicada por causa da tal projeção. Projetamos sobre os outros as ideias que fazemos deles, assim como também fazem em relação a nós. Derramamos sobre eles, e derramam sobre nós, um número sem fim de imagens e formas, de condutas, que acabam construindo em nossa imaginação um pessoa que talvez não seja exatamente aquilo que pensamos. De certa forma, somos como uma miríade de sóis aspergindo sobre todos, não luz, como o Sol original, mas ideias sobre quem são os outros e quem somos nós. Mas nem sempre erramos. Nem sempre erram. Também há os que iluminam a vida quando boa parte de nós é como a Grande Mancha Vermelha de Júpiter.

Há quem acredite que os astros são capazes de nos influenciar. Não ponho isso em questão aqui, não vem ao caso. Gosto de imaginar que influenciamos e somos influenciados por grandes astros, estrelas, planetas e constelações cheios de belezas ocultas, outras evidentes e repletas de fulgor, brilho e luminosidade sem igual: nós.

A busca por zonas habitáveis em algum outro chão longe desse que ocupamos, faz crescer a possibilidade de que, talvez um dia, possamos habitar outra zona desconhecida do universo. Não faz muito tempo, a NASA presenteou os entusiastas da possibilidade de uma nova vida em um novo lugar com a descoberta do KEPLER-22b. Esse exoplaneta – nome dado aos planetas que não fazem parte do sistema solar – soa como uma chance de recomeço, de uma nova Terra, de um lugar onde a vida possa começar outra vez e seguir em frente. Esse desejo pelo novo nos move em direção a novas chances, amores, tentativas. O desejo pelo novo nos move e nos devasta, da mesma forma. Porque, quase invariavelmente, para que haja o novo é necessário haver o fim do que é antigo. Sendo assim, seguimos devastando e reconstruindo, num ciclo infinito, que nos revela novas possibilidades e impossibilidades, continuamente. É necessário levar em consideração um fator que nos prende ao chão, que nos permite pular o mais alto possível, mas nos faz voltar ao solo: a gravidade. No espaço, nessa vastidão de existência livre no universo, não há gravidade. Há vácuo. Vazio. Todos nós estamos sujeitos a gravidade. Não há quem possa escapar. A vida é, por vezes, grave e urgente. Há gravidade nos rompimentos, nos recomeços, nas reconciliações. Há dor, saudade, falta, rupturas, deslizes, desastres, doença, descaso, esquecimentos, obliteração. Há morte, a gravidade maior – mesmo que não seja esse conceito uma unanimidade. Os efeitos e significados da gravidade são fluidos. Não há espaço aqui para questionar se a morte é um fim ou se há alguma continuidade. Morrer pode ser o fim da vida, mas pode ser o fim do que já não guardava vida em si. Do mesmo ponto, morrem fins e nascem começos. 

Supernova. O nome pode não ser dos mais comuns, mas também não é de todo desconhecido. O significado é simples: a morte de uma estrela.  Mas essa morte nós podemos afirmar que não é o fim. Dependendo do quão densa é a sua massa, uma estrela se torna um buraco negro ou uma estrela de nêutrons. Continuidade é a tônica do universo. A vida segue redescobrindo modos de existir. Somos astros em marcha contínua para nossa “supernova”. O que virá depois ainda é, como boa parte do universo, mistério. Mas, não é por não saber o que virá que a vida pausa, para ou espera.  Assim como o universo está em contínua expansão, a existência segue se expandindo. Até que nosso fim, como massa, como carbono, chegue, vamos seguir nossos processos, nos reinventar, orbitar outras galáxias, descobrir outras atmosferas e vamos nos refazer como o céu de Io, uma das 69 luas de Júpiter. Todas as noite a atmosfera congela e desaba inteira, devido a baixa temperatura quando o satélite está na sombra do gigante gasoso. Quando a noite chega ao fim – noite que dura somente duas horas -, Io sai da sombra de Júpiter, volta a receber calor e sua atmosfera evapora e retorna ao seu lugar. As nossas noites, reais ou figurativas, podem durar mais, ou até menos, que as de Io. Talvez a certeza de que as noites vão tornar a acontecer seja imutável, e até mesmo necessária, mas, ainda que o céu caia sobre nossas cabeças, chegará o momento de sair da sombra, se aquecer e começar outra vez. 

Somos um universo inteiro, guardamos mundos dentro do peito, constelações de ideias, galáxias de vontades. Giramos em torno de nós e ao mesmo tempo em torno dos outros. Somos gigantes em expansão. Temos brilho e luminosidade. Somos de um modo ímpar, plural. Somos um coletivo de singularidades. Somos astros. Somos, assim como as estrelas, um  número sem par. Somos além da vista. Somos nós.

Precisamos lidar com isso: somos um mundo de mundos. Somos mudança e permanência. Somos corpos em movimento, cheios de calor. Há quem acredite que exista uma necessidade na humanidade em se sentir parte de algo maior. Vivemos buscando um sentido para sermos o que somos. Somos para si, não somos em si. Os exoplanetas, os planetas, os corpos celestes, as estrelas, as constelações são o que são. Não buscam saber para o que nasceram. Apenas são. Brilham, ou não brilham, são densos, possuem massas solares enormes, mas não questionam isso. Nós queremos encontrar uma razão para sermos maiores, ou não. Queremos explicações, relatos, queremos acreditar, acreditamos, nos damos crédito e nos furtamos certezas. Para nós, apenas ser não basta. Se deveria bastar? Eu não sei. Mas há uma imensidão nessa possibilidade de busca por um novo modo de ser. Podemos mudar, nos transformar, encontrar outros caminhos. Podemos ser o sol hoje e amanhã uma anã vermelha. 

Planetas alinhados, eclipses solares, super luas, quasares, exoplanetas possivelmente habitáveis, 70 septilhões de estrelas e toda uma organização que não cabe no nosso pensar. São imensidões enfileiradas de luz, assombro e beleza. Mas, ainda que guardem em si motivos quase incontáveis de admiração, não há como fugir de uma certeza: ainda que pequenos diante de tanta imensidão, somos maiores. Somos incríveis. Somos somos fascinantes. Somos, em meio aos nossos desalinhos majestosos, um lindo desarranjo. Uma belíssima bagunça. Nós somos nós. 


Diego Neves é músico integrante da banda Legrand, designer gráfico, sociólogo em formação e aspirante a escritor.


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