Divina Arte

Ir ao cinema, assistir uma peça teatral, frequentar shows de bandas de rock, ser fã de séries de tv ou um admirador de literatura. Em nada disso há, necessariamente, algum teor religioso envolvido. Você pode consumir cultura, frequentar museus, passar horas pesquisando e admirando o talento de novos cantores, compositores e escritores, ou redescobrindo a beleza de clássicos, e nisso, você afirma, não há nada de religioso. Será?

Nos cultos e encontros religiosos a música e a dança, por exemplo, são expressões facilmente utilizadas como forma de explicitar sentimentos, anseios, desejos e toda a necessidade e dependência do deus adorado. Nas tradição judaico-cristã, essas expressões são bastante utilizadas. Fica muito claro para nós a importância dessas expressões quando, ao lermos inúmeros versículos bíblicos, como nos Salmos, Eclesiastes, Êxodo ou 2 Samuel. O teólogo americano Franscis Schaeffer, em sua obra intitulada “​A Arte e a Bíblia”, ​observa que, desde os textos da ​Torá​, ou ​Pentateuco,​ as ordenanças acerca das construções dos templos envolviam detalhes como tamanhos, cores e formas determinadas, escolhidas pelo próprio Deus, que revelavam importância estética. Sabemos que tais ordenanças se ligam ao período no qual o texto foi escrito, mas não deixam de revelar a importância com a simetria e a beleza.

Mas, vamos um pouco adiante. Qual seria a relação entre fé e arte, levando em consideração, principalmente, tradições cristãs e judaicas? Será que a arte ficou atrelada somente ao sentido de expressão de culto? Seriam as necessidades observadas por essas tradições, para que a vida seja vivida em plena satisfação e bem estar de espírito, justificavas para temas religiosos serem abordados pelas artes? HansRookmaaker, o“​holândesvoador”, a​firmava que, na verdade,“a arte não precisa de justificativa”.

O senso criativo, visto no talento de mulheres e homens ao redor do mundo, é, por si só, uma manifestação artística divina. Portanto, independente da forma artística, se houve criação, houve manifestação do divino. ​“Deus deu à humanidade a capacidade de fazer coisas belas, de compor músicas, escrever poemas, fazer esculturas, decorar coisas. As possibilidades artísticas estão aí para serem atualizadas, realizadas por pessoas e receberem formas concretas. Deus deu essas coisas à humanidade e seu sentido está exatamente de dádiva, […] mas se a arte possui, dessa forma, seu sentido como criação de Deus, não precisa de justificativas. Sua justificativa é ser uma possibilidade dada por Deus, […] resultado do fato de que a arte está ligada por milhares de laços à realidade.”1

Rookmaaker, um homem que dedicou sua vida para o estudo das artes e sua ação no cristianismo, foi professor e fundador do Departamento de História da Arte, na Universidade Livre de Amsterdã. Morre em 1977, deixando várias obras publicadas, tendo algumas – como “A arte não precisa de justificativa” – traduzidas para o português. Crítico contumaz ao espaço de sentido novo que a modernidade trouxe para arte, amante de blues, jazz e toda a explosão criativa que surgia nos Estados Unidos entre os anos 60 e 70, Rookmaaker não viveu para ver o avanço dos temas cristãos em direção a arte, ou vice-versa.

Dos quadros de Remdbrandt, nos idos de 1600, passando pelo ​Jesus Movement, ​movimento surgido na década de 60, focado nos jovens e que se fez conhecido pela sua interação com espaços não religiosos, como o festival Woodstock, até os dia atuais de ​MTV ​e cultura pop, a temática cristã invadiu a TV, os livros, as canções, os quadros e as expressões artísticas como um todo. A Broadway​, na década de 70, põe o novo testamento nos palcos como musical GODSPELL,​ baseado no ​Evangelho de São Mateus​. O musical, anos mais tarde, ganha uma versão cinematográfica e se espalha pelas telas de cinemas americanos. No mesmo ano de lançamento de​GODSPELL, s​urge outro musical baseado nas últimas semanas de vida de Jesus. Em 1973 o musical também ganha as telas, pondo ao alcance dos olhos dos espectadores curiosos um ​Jesus Cristo Superstar.

Já nos anos 90, quando a indústria da música passava por um momento de transformação e renovação muito forte, começa a se consolidar o movimento ​GOSPEL. ​Nos Estados Unidos o termo nasce no início do século XX e tem uma conotação um tanto diferente do que no Brasil. A música de raiz negra, feita nas igrejas dos guetos americanos, ganhava o nome de gospel por ter uma temática ligada a Deus e todas as bem-aventuranças que o divino poderia nos conceder. Movimento que teve força suficiente para se firmar como estilo e ser a voz do povo negro, que enfrentava um ápice na luta racial em território norte americano, na década de 40. Entre tantos nomes e vozes, talvez a maior estrela – e também a primeira – tenha sido Mahalia Jackson, que usou suas músicas para compartilhar mensagens de fé, apoio e encorajamento, fazendo de suas letras uma expressão de apoio ao movimento de luta por igualdade racial. No Brasil o termo foi ressignificado, classificando bandas e cantores que traziam mensagens religiosas em suas músicas, sendo considerados ​artistas gospel. ​Mas, o que antes era restrito e direcionado para a igreja, passou a ganhar as prateleiras e trilhas sonoras de produções não ligadas ao universo religioso. Os temas bíblicos ganhavam espaço nas canções de bandas como ​DcTalk, Rebanhão, Catedral,Stryper. Suas músicas se voltavam para além do campo religioso. A banda​ DcTalk, multipremiada nos Estados Unidos, compôs uma música atendendo a pedidos da produção de uma famosa série americana: a aclamada série ​Arquivo X. ​A banda ​Stryper fez parte da trilha sonora da novela brasileira O Salvador da Pátria. ​Mas a temática religiosa sempre foi uma tônica na mpb. Poderia citar inúmeras canções de artistas como ​Gilberto Gil e ​Los Hermanos​. Fora do Brasil, vimos ascender ao sucesso o fenómeno pop – assim considerado nos anos de 2007 a 2009 – conhecido por seu estilo musical diferenciado: uma mistura de rock, rap e reggae com letras que dissertavam sobre a fé judaica ortodoxa. Nascido Matthew Paul Miller, mas conhecido mundialmente como Matisyahu. Ganhou notoriedade por se apresentar de forma enérgica e, em contrapartida, vestindo-se como um tradicional judeu ortodoxo.

As produções de séries e filmes, já nos anos 2000, trouxeram para as telas títulos como a série ​Joan of Arcadia – transmitida no Brasil pelo finado canal Sony Spin -, que contava a história de uma menina com um tipo transtorno que lhe permitia ver Deus na forma de pessoas comuns. Desde um colega de classe ao faxineiro do colégio, Joan via e conversava com Deus. A série, apesar de bem produzida, durou apenas duas temporadas. Poderíamos apelar ao clichê de sucessos c​omo A paixão de Cristo e uma série de títulos brasileiros voltados para a fé, como a comédia ​Deus é Brasileiro. A​ ​Disney​, renomada por suas produções infantis, levou para as telas uma bem sucedida adaptação dos livros escritos pelo teólogo e escritor britânico Clive Staples Lewis – C.S. Lewis. ​As Crônicas de Nárnia, ​em revelação feita pelo próprio autor, foram escritas para ensinar históricas bíblicas para as suas filhas de modo mais interessante e ligado ao universo infantil. Agora tais histórias já fazem parte da coleção de acertos e derrapadas do “planeta” Hollywood.

Os exemplos de autores, compositores, pintores seriam inúmeros. Poderíamos levar dias e dias listando nomes e obras. Mas o intuito não é listar, nem muito menos classificar obras como sacras ou não. O real intuito deste texto é tornar nítida a percepção de que a temática religiosa não é um assunto concernente só ao mundo dos “crentes”, mas é uma temática universal, que rompe as paredes das instituições ou dos dogmas. A arte é livre e sem justificativa. Sendo assim, as ações artísticas são, por si só, manifestações palpáveis do divino. O que não abre espaço para o proselitismo. A arte é um campo vasto de manifestação, mas já superamos a era da estética religiosa, como Walter Benjamin nos esclarece em ​A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. M as assim como Benjamin e seus colegas da Escola de Frankfurt alertaram, existe um problema, que podemos abordar numa outra oportunidade: o problema da retificação. A partir do momento que reconhecemos que o mundo pop é parte da Indústria Cultural, todo esforço de tornar qualquer temática um fragmento do discurso pop, é um esforço nota tornar tudo isso em produto. São dois lados da mesma moeda: ao mesmo tempo que a boa mensagem é passada, quando tornamos a mensagem produto, a coisificamos e passamos a determinar o padrão do que é bom ou não, sendo que o parâmetro de bom ou não é o parâmetro mercadológico. Quanto mais ouvem, mais vendem, mais compram, mais consomem. O que é bom, passa ser usado de um modo vazio de sentido e desencantado. E talvez aí as coisas comecem a se afastar do bom intuito de expandir o território de alcance de mensagens inspiracionais de fé e esperança e passem e ser só mais números e prateleiras. Mas, esse é um outro assunto.


Diego Neves é músico integrante da banda Legrand, designer gráfico, sociólogo em formação e aspirante a escritor.


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