2. Desesperança

O carro subia as ruas esburacadas daquele bairro até então inóspito para eles, que agora se tornaria o seu lar, enquanto ela segurava um pote de vidro cheio de água que mais parecia o capacete submerso de um escafandrista. Dentro do vasilhame um peixe flanava de um lado para o outro, num vaivém compassado pelos solavancos do automóvel, a dona se agarrando a ele determinada a que nenhuma gota caísse nem seu estimado companheiro de nome Floquinho sucumbisse sem água no chão daquele veículo. O rádio ligado tocava Encontros e despedidas ao som de Maria Rita. “Todos os dias é um vaivém…”. Parecia até que Floquinho ouvia a música, imerso em seu mundo de bolhas.

A poucos metros da nova morada, o homem pousara a mão na coxa esquerda da esposa, sendo retribuído com um sorriso. Entre todos esses anos juntos, esta era a pior crise pela qual passavam. Ele havia perdido o emprego na universidade federal em que trabalhara como vigilante devido ao contingenciamento financeiro imposto pelo Governo às instituições federais de ensino. E justamente por esse motivo mudavam de casa, conseguindo um aluguel bem mais em conta no subúrbio da cidade.

Quando encostaram, os homens da mudança já estavam a postos, com a porta traseira do caminhão aberta prontos para descarregarem os poucos pertences do casal amealhados com sacrifício e persistência. Ele saiu do veículo, mãos suadas devido ao esforço no volante e câmbio do automóvel antigo, deu a volta, amparou a esposa segurando o pote de vidro com o peixe dentro até que ela descesse. E, numa distração, suficiente para se criar fissuras, ao passar novamente o peixe a ela, o vidro escorrega de suas mãos e estilhaça no chão do asfalto, Floquinho salta duas ou três vezes em direção à grade de um bueiro, mergulhando em um de seus vãos rumo ao esgoto, para desespero de sua dona e o olhar incrédulo do marido. Como se não bastassem o desemprego, a mudança, a vida lá fora, espremida pela falta de perspectiva, o mundo sombrio, pobre, esquecido deles; e agora sem o peixe de olhos brilhantes para lhes dar um pouco de humanidade e senso de cuidado.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br


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Um comentário

  1. Darlan é um cara especial. E somente caras especiais desenvolvem uma narrativa amorosa e cuidadosa como esta. Dá vontade de ler mais. Conhecer melhor os personagens. O passado, o presente e o futuro. É vida real que pulsa em cada linha. Parabéns, meu amigo!

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