Jesus é Rei – por Kanye West.

“Não viva mais pela cultura, não somos escravos de ninguém”

Eu costumava frequentar a mesma loja no centro do Rio de Janeiro. Todas as vezes que precisava ir ao centro, minha última parada era na rua 1o de Março. A Godspell era a maior loja de discos especializada em música cristã do Rio – pelo menos para mim. Era início dos anos 2000, eu tinha entre 14 e 15 anos, e todos os trocos dos lanches da escola que eu conseguia juntar, invariavelmente, se tornavam novos discos na minha coleção. Eu era um adolescente que ainda descobria o rock. Nascido e criado nos subúrbios do Rio, minha formação musical é diversa: passa pelo funk de Mc Marcinho e Furacão 2000, o pagode 90, o rock dos Engenheiros do Havaí e o rap/hip-hop. De berço evangélico, tudo que experimentei na música, em algum momento, se voltava para a temática religiosa. Justo por isso, quando conheci a Godspell, a elegi como uma espécie de paraíso. Títulos de variedade infinita e uma coleção inimaginável de estilos que versavam sobre fé, salvação e Jesus estavam ali ao alcance da minha mão – e ao alcance do bolso, se eu pudesse dispor, em média, uns R$22. Lembro que no fim dos anos 90, quando ainda era criança, a música que ouvia na igreja, no momento dos cultos, tinha uma forte influência teológica e estética da música negra norte-americana. Adhemar de Campos era o que tínhamos no Brasil como nosso Ron Kenoly. Ron Kenoly, se você não conhece ou não se lembra, foi um dos artistas cristãos mais importantes da gravadora Hosanna Music – um departamento voltado para música congregacional dentro da gigante Integrity Music. “I See The Lord”, que em português ficou conhecida como “Vejo o Senhor” – possivelmente a música que contém o solo e linha de baixos mais espetaculares dos últimos 25 anos – foi, em todos os sentidos, um hino que marcou essa transição dos anos 90 para os anos 2000 – quiçá foi o hino de toda uma década. Depois de Ron Kenoly, outros nomes foram se somando ao panteão da música cristã. Ouvir a palavra gospel no Brasil do início do século XXI, ainda era algo que representava uma segmentação, que se traduzia por tudo que fosse religioso. Sendo assim, não era difícil termos uma enorme loja – e distribuidora de títulos incríveis – bem no coração do Rio de Janeiro dedicada à esta segmentação musical. Além dos títulos, outro diferencial me fazia não querer sair de dentro da Godspell: todos os títulos distribuídos pela BV Films – a distribuidora que funcionava dentro da própria loja -, o que significa dizer que eram todos os títulos das grandes gravadoras americanas, estavam dispostos para que você pudesse ouvir. E era isso que eu fazia: passava horas escolhendo todos os títulos que queria ouvir, juntava a minha pequena pilha de uns 8 a 10 discos, os colocava sobre o balcão do caixa, onde ficava o aparelho e o fone para que pudéssemos ouvir, e ouvia todos os discos. Entrava na loja, na maioria das vezes, no meio da tarde, por volta das 15h, e saía quando o dia já se despedia – e a loja se preparava para fechar. Ouvi e conheci muita bandas de rock, muitas cantoras pop, mas naquela época, o que fazia a cabeça dos músicos da igreja era um outro som: a música negra. R&B, rap, hip-hop, soul, funk(não o carioca, o que é de certo modo é de se lamentar) eram os sons que serviam como objeto de desejo de cantores, instrumentistas e compositores cristãos. Eu amo música e suas possibilidades. Movido por esse sentimento, mergulhei nesse universo e fui brindado com a alegria de se apresentado a nomes como Mary Mary, Yolanda Adams, Kirk Franklin e Fred Hammond. E é justo esse último nome citado que vai fazer a conexão entre Rio de Janeiro, 2005 a 2011 (quando a Godspell existia) e os Estados Unidos de 2019.

Se você gosta de música, se é ligado ao universo dos lançamentos de disco, se interessa pelo universo pop ou se apenas, ao longe, tem algum interesse em assuntos que estão em alta na mídia voltada para celebridades, suponho que tenha tomado conhecimento do lançamento que tem dado o que falar desde os seus rumores até a sua realização: o novo disco “gospel” do rapper, cantor, compositor e produtor americano Kanye West. Se não sabe de quem estou falando, posso refrescar memória, ou tentar refrescar, citando o famoso caso ocorrido na edição de 2009 do Video Music Awards (VMA), prêmio produzido pela MTV. Quando chamada ao palco para receber o prêmio de Melhor Vídeo do Ano, Taylor Swift subiu ao palco, recebeu a sua estatueta de astronauta – que é o troféu que todo artista vencedor do VMA recebe – e quando se preparava para dizer as primeiras palavras do seu discurso de agradecimento, teme o microfone tomado de sua mão e o seu discurso brevemente interrompido por um Kanye West revoltado com o resultado, ainda que tenha parabenizado Taylor inicialmente, dizendo que o prêmio deveria ser entregue À Beyoncé. Isso ocorreu há dez anos, mas ainda assim, é um fato pelo qual Kanye é lembrado boa parte das pessoas que não estão ligadas ao mundo da música. Seria justo dizer que Yeezy – como também é conhecido – é famoso somente por esse fato e por ter casado com a socialite, empresária e personalidade – seja lá o que “personalidade” signifique nesse mundo dos famosos – Kim Kardashian? A resposta é clara: Não!

Kanye Omar West foi um menino de classe média, nascido em Atlanta, estado da Georgia. Filho de Ray West, fotojornalista e ex-membro do movimento Pantera Negra, e de Donda West, professora de Inglês da Clark Atlanta University, Kanye não teve uma história que convencionou-se como característica dos rappers famosos pelo estilo ​gangsta. Não foi um menino crescido nas ruas, que tenha se envolvido com o crime ou que tenha feito fama por suas músicas versando sobre contravenções e ostentação. O menino de classe média gostava de produzir seus ​beats ​em casa, enquanto conciliava a música e vida escolar. Chegou a iniciar seus estudos acadêmicos ​American Academy of Art​, em Chicago, mas desistiu dos estudos para tentar a carreira musical. O sucesso como produtor veio após a produção do disco ​The Blue Print,​ do também mundialmente conhecido Jay-Z. O disco foi sucesso de crítica e vendas e alavancou o nome de Kanye como produtor dentro da Roc-A-Fella Records​, fundada pelo próprio Jay-Z. Consolidado como produtor, Yeezy queria alçar voo próprio como artista. Enfrentou a ceticismo da cena ​rap/hip-hop por não ser um sobrevivente da vida difícil das ruas e chegou a ser visto como um burguês por outros rappers. ​The College Dropout f​ oi sua resposta. O álbum foi um sucesso estrondoso e colocou Kanye definitivamente na cena como um artista promissor. Mas a criatividade de Kanye o fez um pouco maior do que uma promessa: talvez Keane seja o artista mais relevante e influente da sua época. Tanto talento e sucesso, sem qualquer dúvida, abrem portas, mas são um também um fardo. Já no primeiro disco, ele escreve ​I want to talk to God,butI’mafraidbecauseweain’tspokeinsolong”.“​QueroconversarcomDeus,mastenho medo porque faz tempo que não nos falamos”. Kanye queria a grandeza, a grandeza que lhe soa tão peculiar, que faz com que se auto intitule Deus, mas parecia buscar ajuda divina para isso. Os anos passaram, as polêmicas vieram, Kanye perdeu a mãe, sofreu, se perdeu, tenta se achar ainda e recorre ao divino outra vez. Em 2019, a grandeza criativa, estética e o talento de Yeezy já são realidade. A novidade é modo como ele põe tudo isso em voga outra vez.

Em Abril deste ano, bem no domingo de páscoa, Kanye West apresenta, no meio do Coachella Festival -​ um dos maiores festivais de música do mundo – o ​Sunday Service. ​Uma banda, um coral ​gospel e um repertório de músicas inéditas e releituras de clássicos do rock e do pop com letras sobre fé. O mundo voltou os olhos para entender o que era aquela manifestação exuberante em estética e execução. Era Kanye anunciando sua nova empreitada: sua incursão nos caminhos da fé. Meses depois, após anúncios de datas e falhas na entrega, rumores se confirmam, nasce o nono disco da carreira, o primeiro com a temática ​gospel Jesus is King.

A essa altura você pode estar se perguntando: Mas e o Fred Hammond, cadê? Fred, um dos artistas mais proeminentes da safra do gospel do início do século, divide a nova faixa do disco com Kanye. Sim, um artista ​gospel ​, amado pela igreja brasileira, autor da maravilhosa “You are”,​ que eu cantei tanto em cultos e em especiais de natal, está ao lado de um dos artistas mais controversos politicamente, que ainda é visto de forma cética por muita gente, apesar do talento, que ainda é questionado e contestado, que por vezes chega a ser tomado por idiota. Fred e Kanye, lado a lado, cantando. ​Hands On ​pode ser o coração desse disco – e a melhor música para um artista como Hammond estar envolvido. Sabe por quê? Eu vou deixar que eles mesmo se justifiquem e expliquem o porquê:

Desligue todas as luzes, Ele é a luz
Fui parado na blitz, vi as lanternas
O que você está fazendo na rua à noite?
Me pergunto se eles vão ler seus direitos
Décima Terceira Emenda, três infrações
Virei à esquerda quando eu deveria ter virado à direita Disse a Deus que seria a última vez na vida
Disse ao diabo que estou entrando em greve
Disse ao diabo que quando o vir à vista
Estive trabalhando para você minha vida inteira
Disse ao diabo que estou entrando em greve
Estive trabalhando para você minha vida inteira
Nada pior que um hipócrita
Mudança, ele não é realmente diferente

Ele nem tenta obter permissão
Pede conselhos e eles o desrespeitam
Disse que eu finalmente vou fazer um álbum gospel
O que você tem ouvido dos cristãos?
Eles serão os primeiros a me julgar
Fazendo parecer que ninguém me ama
Eles serão os primeiros a me julgar
Estou sentindo como se ninguém me amasse
Disse às pessoas que Deus era minha missão
O que você tem ouvido dos cristãos?
Eles serão os primeiros a me julgar
Fazendo parecer que ninguém me ama
Fazendo você se sentir sozinho no escuro e você nunca verá a luz Cara, você nunca verá seu lar e nunca verá as redomas
Eu posso sentir quando escrevo, esse é o ponto de viver na virtude Se eles apenas vêem os erros, nunca ouvem as músicas
Só ouvir é uma luta, mas você me elegeu para a luta
É tão difícil se dar bem se eles apenas veem um ínfimo
Do amor da religião
O que você tem ouvido dos cristãos?
Eles serão os primeiros a me julgar
Fazendo parecer que ninguém me ama

Eu não estou tentando levá-lo ao dinheiro Mas se eu tentar te levar a Jesus
Somos chamados de crentes meia-boca Apenas Efésios semi-letrados

Ao menos se eles soubessem o que eu sei, uh Eu nunca fui novo até conhecer
O Deus vivo e verdadeiro, Yeshua
O Deus vivo e verdadeiro

(Alguém ore por mim)
[Fred Hammond]
Mostre pra eles
Mãos para o alto, mãos erguidas, mãos erguidas Mãos erguidas, mãos para cima

Na sua cara, a razão
Mãos erguidas, sim, erguidas
[Fred Hammond e Kanye West]
Eu mereço todas as críticas que você tem
Se esse é todo o amor que você tem, então é isso
Para cantar de mudança, você acha que estou brincando
Para louvar o nome Dele, você pergunta o que eu estou fumando Sim, eu entendo sua relutância, sim
Mas eu tenho um pedido, você vê

Não me rejeite, coloque suas mãos em mim Por favor ore por mim
Me seguro na morte
Me mantenho de pé, todos caídos

Alguém ore por mim
[Fred Hammond]
Mostre pra eles
Mãos para o alto, mãos erguidas, mãos erguidas Mãos erguidas, mãos para cima

Na sua cara, a razão
Mãos erguidas, sim, erguidas

Kanye se associou a Donald Trump. Kanye disse, em um de suas últimas apresentações do ​Sunday Service ​que a escravidão era uma “escolha”. Kanye é questionado, contraditório, controverso. E os cristãos, o que pensam sobre isso? Fred e Kanye disseram nos versos acima. Mas há muito mais a ser dito. É necessário deixar claro que o estilo ​gospel ​é um produto da escravidão. É o estilo que nasce das ​work songs,​ que eram as canções que os escravos cantavam enquanto estavam no campo, como forma de dar ritmo ao trabalho e, por vezes, também denotarem protesto. Quando livres, os escravos não eram bem recebidos nas comunidades de fé cristãs, majoritariamente brancas. Uma vez negado o direito de exercerem sua fé, os escravos que conseguiram comprar sua liberdade, se uniram para formar uma comunidade de fé negra. Em 1817, na Filadélfia, nasce a Igreja Metodista Episcopal Africana – a primeiraigrejaprotestanteindependentecriadapornegros.A​worksongs​ea​s​spiritualsongs foram as bases da música que fazia parte dos cultos. Assim nascia o ​gospel:​ um estilo musical que tem sua raiz as marcas da luta por direitos, da guerra contra a segregação racial. Do ​gospel vieram o ​jazz, o blues e​ também rock. Nomes como Sister Rosetta, Nina simone e Mahalia Jackson são sempre lembrados como símbolos de um estilo que cantava a esperança em meio aos conflitos e a dor. Mahalia se uniu a Martin Luther King Jr., na luta contra a segregação racial e fez de suas músicas hinos de protesto. Fica evidente que quando se fala em ​gospel como estilo, se fala da história negra, se fala da fé negra, se fala de origens. Quando Kanye decide fazer um álbum gospel, ele vai de encontro a tudo isso. Mas estaria Kanye sendo o Kanye do furacão Katrina, que não mediu palavras para criticar George Bush dizendo que o presidente não se importava com o povo negro? Ou estaria Kanye tentando criar uma política entre negros e os ideais conservadores republicanos?

Duasmatériasdarevista​VICEs​ãoimportantesparatermosumnorteparaconstruirmos qualquer opinião. A primeira é de 2018 e tem o seguinte título: “Igrejas negras nos EUA estão considerando armar seus fiéis”. ​“Não posso falar por igrejas de outras etnias, mas como líder de uma igreja negra, fico muito preocupado. Desde que nove pessoas foram mortas em Charleston, nossa igreja instalou câmeras de segurança e tudo mais, porque já tivemos indivíduos entrando e sentando no meio do culto, e depois se levantando e indo embora sem mais explicações.” ​As palavras são do Reverendo James Cokley, da igreja Batista Missionária Cherry Hill. O medo de instaurou após o ataque na Igreja Metodista Episcopal Africana em Charleston, no ano de 2015. Apesar de não serem a favor do porte de armas, medidas drásticas passaram a ser pensadas como solução para defesa do povo negor e do exercício de sua fé, sem a ameaça de supremassistas brancos como Dylann Roof. Em outra matéria com o título “Falamos com especialistas em religião sobre o novo álbum de Kanye West, ‘Jesus is King’”, o questinamento posto é sobre o quão genuína é a conversão de Kanye ou se ele está apenas fazendo marketing usando a religião. Apesar de concoradrem que não é possível julgar o quão genuína seja a fé de Kanye, os professores doutores Xavier Pickett, da Universidade de Nova York, e Jay-Paul Hinds, professor assistente do Semminário Teológico de Princeton, veem a aproximação de Kanye com a igreja negre de um modo complexo. ​“Se você quer fazer alguma coisa com os negros neste país, você ainda precisa passar por uma igreja negra” diz Hinds. Com as eleições americanas se aproximando, o caminho de Kanye pelas igrejas negras com seu ​Sunday Service pode significar uma ponte política entre negros e Donald Trump. Pode ser também que Kanye queira reduzir o impacto negativo de suas alegações anteriores e esteja buscando uma espécie de perdão por parte dos negros, mostrando que é também um deles, ao ssumir sua fé e propagar o ​gospel com a força que o nome de Yeezy culturalmente tem. Kanye foi tema de cursos nas univerisdade Washington University e na Georgia State University. Sua letras e seus discrusos – e até o episódio com Taylor Swift no VMA – foram os temas centrais das matérias. Isso mostra o quão relvante Kanye West é. Mas, uma observação feitas por Hinds e Pickett é muito perspicaz: questionados se o que Kanye com ​Jesus is King ​é fé ou marketing, a resposta é a mesma: ele não faz nada diferente do que os televangelistas, que vendem a palavra.

Quando kanye West fala sobre cultura, ele fala sobre si mesmo. Ele é parte da cultura que ele mesmo critica. Dialética em seu supra-sumo. Como artista, como parte da cultura, Kanye vende ao mesmo tempo Jesus e rap. Isso não o coloca como um vilão, nçao reduz sua grandiosidade, nem esvazia de sentido a sua fé. Mas, olhando para a comparação entre Kanye e os televangelistas, Emicida, em “​Hoje Cedo”,​ já dizia: ​“Se a sociedade vendeu Jesus, porque não ia vender rap?”

Que o ​Jesus is King é um excelente disco e que, como quase tudo que Kanye se envolve, traz esse alto dialético, isso é incontestável. Mas, se posso finalizar esse texto com um conselho, eu digo: não seja como os cristãos da letra de ​Hands On. Seja o Fred Hammond d Kanye, sente e o escute. Kanye e Mv Bill nunca colaboraram, mas, em suma, dizem o mesmo: só Deus pode me julgar.

Independente de tudo isso, ​Jesus is King!


Diego Neves é músico integrante da banda Legrand, designer gráfico, sociólogo em formação e aspirante a escritor.


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