Foi no Bairro Santa Rita, zona leste de Juiz de Fora, ele tinha 4 anos, seu pai estava há muito ali, interagindo, bebendo, por vezes sendo rude, às vezes sendo humilde, num bar próximo a sua casa. O filho brincava na rua, feliz da vida, bermuda rasgada colorida, pés descalços e sem camisa. Uma moto passou, um rapaz a pilotava, estava de capacete, parou a dez metros do bar. Desceu do veículo, com passadas largas em direção ao estabelecimento. Sacou do seu bolso um 38 e o descarregou em seu pai, que caiu ao chão já sem vida. A criança estava em pé na calçada, visão privilegiada, teve tudo ao seu alcance, inclusive o cheiro do sangue que escorria no chão de terra batida do boteco, virando uma lama espessa e escura. Começou a chorar desesperadamente no momento em que a moto sumia no horizonte, no alto do morro.

O tempo passou, o assassino foi pego, solto, julgado, inocentado. A família do morto se revolta, se entristece, paralisada pelo que chamam de injusta vida. E o menino cresce ouvindo histórias, sabendo do que viu, o cheiro do sangue no chão de terra batida, seu pai peneirado por um troglodita. Não! Não pode haver paz assim. Se você quiser paz, prepare-se para a guerra. Ano após ano, o garoto cresce, vítima da sua própria memória, de sua inglória tristeza que o disseca, que o resseca por dentro, sendo só fibra tensa; na parede do seu quarto recorte de um jornal com a matéria da morte do seu pai, uma foto do assassino, um prego espetado em sua cabeça. O garoto tem apenas 17 anos, suas mãos já estão calejadas, manchadas de sangue alheio, o vício da morte o pegou, aquele que alvejou seu pobre pai alojou-lhe no peito a fragrância assassina. Não há mais diferença entre um e outro. Até seu melhor amigo já lhe diz: “fazer isso está na moda, até o cara lá de cima faz, o capitão, o mito; com ele não tem dó, metralha mesmo!” Assim o garoto se fortalece, se enobrece no discurso raso, se torna gigante na solene busca por vingança. Ele acredita nisso, ele confia nessa trajetória no momento em que sentiu o cheiro do seu pai morto.

Com arma na cintura, escondida pela blusa, foi até o mercado onde o assassino de seu pai trabalhava e lá entrou resoluto a ceifar uma vida e transformar em luto a história de uma família. A cada disparo seco que ecoava no ar e cortava a carne daquele cidadão ora trabalhador, o alívio no peito do garoto ressecado aumentava; e o cheiro do sangue o fazia feliz. Saiu tranquilamente até a rua, correu alguns quarteirões, pegou um ônibus e parou na Avenida Brasil, cortada pelo Rio Paraibuna. Tirou a arma da cintura, cheiro de pólvora na mão, e a jogou naquelas águas pardas. Estava feliz, como nunca antes em sua precoce existência. Olhou para o céu, fez o sinal da cruz e foi para casa tomar um banho.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br



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