Corpo e Espírito são Soberanos

“…o único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade é impedir o dano a outrem. […] Sobre si mesmo, sobre o seu próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano.”

Esta frase pode ser atribuída, por qualquer desses neoconservadores que agora se consideram os guardiões da moral que reconduzirá o Brasil ao caminho do progresso, e que ora se arvoram no Poder na figura de Jair Bolsonaro, a um militante radical filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que tem o sobrenome Guarani Kaiowá no Facebook, que usa touca de crochê e fuma maconha em qualquer Institudo de Ciências Humanas (ICH) dos muitos espalhados pelo Brasil.

Muito provavelmente, não se dá muita importância a essa citação nesses “think thanks” da direita, como os institutos Mises ou Millenium, ou quando muito o interpretam à luz do controle do Estado sobre a economia.

De fato, aí está contido o viés liberal do controle estatal sobre as transações e especulações realizadas por quaisquer indivíduos livres e suas empresas, justamente porque esta é uma máxima do liberalismo. Seu autor é o norteamericano, protestante e conservador John Stuart Mill, que deixou, no século XIX, um dos mais importantes alicerces do liberalismo do século XX, sobre o qual se construiria as atuais sociedades nortamericana e europeia.

Entretanto, tais incautos ignoram, conscientes ou não, o forte argumento sobre moral e costumes circunscrito à afirmação. Quando Mill faz a defesa da liberdade do corpo e do espírito, tece uma argumentação que vai muito além do dinheiro, refletindo sobre a sociedade necessária para que fluam os capitais livremente, contribuindo para o crescimento da economia e o enriquecimento das nações, no escopo lançado por Adam Smith.

Ou seja, quando se discute Stuart Mill nos dias de hoje, evoca-se seu desejo de que o ser humano decida sobre o seu corpo e espírito sem a interferência de outras pessoas e, sobretudo, sem o Estado. Ora, se esse indivíduo é homem ou mulher, negro, branco, ou índio, se sua identidade e gênero é A, B ou H, isto diz respeito apenas e unicamente a ele, indivíduo, não cabendo o julgamento de outrem. Em que pese que, no contexto da época, isso se referisse às questões abolicionistas e de emancipação da mulher na sociedade americana do pós Guerra Civil, essa premissa reivindica, de forma ampla, que a moral e o Estado não sejam barreira para a inclusão que visa à produção e ao consumo, fazendo girar de forma mais eficaz a roda do capitalismo.

Portanto, quando tais grupos do Brasil atual, que se dizem liberais, atacam minorias raciais ou de gênero, ou dão suporte à censura como ocorreu em 2017 na exposição Queermuseu do Rio Grande do Sul, ou atacam artistas, como se passou esta semana com a charge de Carlos Latuff exposta por ocasião do Dia da Consciência Negra no Congresso Nacional (em que o desenho de um negro assassinado por um Policial Militar foi depredado por um deputado federal do PSL), negam uma das principais premissas do liberalismo: a soberania do indivíduo sobre o corpo e o espírito.

O Brasil de hoje é regido por um casamento de liberalismo econômico com conservadorismo nos costumes que desfigura os fundamentos mais importantes da organização social nos países mais lembrados pela classe média como exemplos de sociedade. Isso vale, inclusive, para a guerra às drogas que sustenta o genocídio da população negra das periferias, denunciada por Latuff e atacada no Congresso. Isto porque, na venda e consumo de drogas, nada mais há que uma relação entre dois indivíduos, um interessado em vender e outro em comprar um produto que, se há de lhe fazer mal, isso não diz respeito aos demais, a menos que resulte em ameaça à ordem social. A julgar pelo amplo consumo de maconha nas classes médias e, menor, porém igualmente considerável, de cocaína nos núcleos mais abonados da pirâmide social, nota-se que a sociedade continua de pé.

E, se o argumento é de que o uso indiscriminado de determinadas drogas por grande parcela da sociedade, aí sim, ameaçaria a ordem social, neste caso a resposta é de que há de se investir em educação e conscientização para a não procura por essas substâncias. E se ela há de ser proibida, há de ser quebrada toda a estrutura que a mantém circulando no país. Não há de simplesmente ser morto o vendedor que é o ponto final de sua cadeia, o qual recorre a esse produto porque há quem queira comprar, e não muito quem esteja disposto a correr os riscos de vender, restando esta tarefa a quem nasceu pobre e não considera ter muito a perder.

Enquanto essa for a estrutura social do Brasil e o contexto da circulação das drogas no país, não se pode não conceber o tráfico como resultado das relações de troca entre corpos e espíritos soberanos e, se a parte mais frágil dessa relação é perseguida e assassinada pelo Estado, a crítica de Latuff é pertinente. E, ainda que não o fosse, seu espírito seria soberano, inclusive no erro. Não devendo, pois, ter sua charge atacada.

Assim reza o postulado liberal de John Stuart Mill, revisitado no Brasil do século XXI.


Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para os jornais Brasil 247 e El Siglo de Chile. Foi correspondente internacional na China em 2019.


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