Protestantismo: Convergências e Confluências com os Direitos Humanos e o Estado Laico

Ultimamente, muito se tem dito sobre Direitos Humanos, e o Estado Laico, às vezes, num sentido positivo, e outras, numa contramão, os termos tem sido utilizados numa conotação, inclusive, pejorativa. Mas o que percebemos na prática é que poucos conhecem, reconhecem, ou mesmo, compreendem a importância das temáticas que tem por objetivo que os cidadãos tenham assegurados direitos e liberdades que são inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os Direitos Humanos tem seu escopo na Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), por meio de uma  Assembleia Geral, da Organização das Nações Unidas (ONU). Essa declaração que é composta por trinta artigos que tem por objetivo ser uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações.Nesse sentido RODIGUES (2012) explica: 

“A inspiração teórico-política na base da construção do Estado democrático brasileiro propõe que é dever dele defender e zelar por um ambiente social que garanta, igualmente a todos os cidadãos, as condições necessárias ao pleno desenvolvimento individual e coletivo. Isto envolve a responsabilidade do Estado em desenvolver políticas públicas (sociais) que resultem benefícios como: seguro saúde e assistência médica pública, educação, habitação e direitos trabalhistas, os quais constituem e dos quais depende o bem-estar da sociedade. Nisto consiste o pacto social entre Estado e cidadão. Essa intervenção pode ser direta ou indireta, a depender de cada Estado.” (p. 152)

Outro ponto, que hoje, faz parte de debates calorosos e, normalmente, sem nenhum embasamento teórico, diz sobre as linhas que cruzam o Estado Laico, os Direitos Humanos e os Valores Cristãos. Para caminharmos nessa questão, primeiro precisamos compreender o que significa “Estado laico”, e o que ele representa em um Estado Democrático de Direito. Em um Estado Laico, os dogmas, crenças e doutrinas religiosas não podem ser utilizados, de forma alguma, como fundamento para determinar como uma a nação irá conduzir suas políticas e administração. Segundo RODRIGUES (2012) para o Brasil 

“Entendesse que, no caso brasileiro, o Estado declara-se separado das religiões e essa condição se traduz na qualidade de laico, isto é: não cabe ao Estado favorecer qualquer instituição religiosa, manter relação de dependência ou embaraçar-lhe o funcionamento, a não ser que haja prenúncio de ameaça ao bem-estar social. Essa compreensão emerge da interpretação da lei e do que ela sugere como separação”. (p.151)

A Constituição Federal brasileira de 1988, em seu art. 5º, inciso “vi”, diz: “que todas as pessoas são iguais perante a lei e que é inviolável a liberdade de consciência e de crença destas pessoas, sendo desta forma, assegurado, o livre exercício dos cultos religiosos e sendo garantida a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. A lei maior, normativa e declara que o Brasil é um país laico e possui ampla liberdade de expressão e de religião. Somos livres, plurais e diversos, não cabendo a nenhum governante, elucidar comportamentos e nem interferir, na forma como nós, constituímos nossa visão de mundo. O brasileiro é livre para expressar pensamentos religiosos, ou não religiosos, sua sexualidade e seu modo de vida, até mesmo é possível, constituírem novas formas de religiosidade ou espiritualidade.

Assim, como elucidar valores cristãos, em especial, protestantes, em um país que desfruta de liberdade de liberdade parece redundante, pois, convivemos livremente com variadas formas de entendimento do Sagrado. Todas essas formas são legitimas e devem ser respeitadas e resguardadas.

A Reforma Protestante nos deu o desafio de formular novas hermenêuticas e interpretações da Palavra de Deus, a Bíblia. Nesse espaço quero discutir, até que ponto o protestantismo se relaciona de forma positiva ou negativa com os direitos humanos, e quais as ferramentas poderão nos auxiliar na desmistificação dos direitos humanos que, ultimamente, tem ganhado por grupos religiosos, ditos cristãos e conservadores, como privilégio apenas desses indivíduos que se auto denominam “cidadãos de bem”.  O norte do tema será dado através de leituras de autores como: Martinho Lutero, Leonardo Boff, e o professor Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro e Elisa Rodrigues.

Pretendo esboçar alguns dos assuntos que se referem aos direitos humanos e suas convergências com cristianismo, com um recorte no protestantismo. Para problematizar a questão me remeto a uma postura contraproducente do atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, com relação aos direitos humanos, o que tem levado várias organizações a se preocuparem com essa questão no Brasil.

“Em outubro de 2018, logo após o fim do processo eleitoral, alertamos que as posições de Bolsonaro representavam um risco concreto para os direitos humanos no país. Temos acompanhado atentamente seu governo, e, infelizmente, nossa preocupação começa a se justificar: o governo de Bolsonaro tem adotado medidas que ameaçam o direito à vida, à saúde, à liberdade, à terra e ao território de brasileiros que, estejam no campo ou na cidade, desejam uma vida digna, e livre do medo, afirma Jurema Werneck, Diretora Executiva da Anistia Internacional no Brasil, que completa: “São medidas que podem afetar milhões de pessoas. E, para nós, um país justo não exclui seus cidadãos. Um Brasil justo é um Brasil para todo mundo”. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2019)

Falas espetaculosas e denegrindo os direitos humanos tem ganhado respaldo e ecoado em várias igrejas, entre elas, protestantes, pentecostais e, principalmente, as neopentecostais, que se remetem, principalmente, ao Antigo Testamento, para justificarem ideias contra a diversidade, a pluralidade e o país laico.

Dentro da tradição protestante cristã, numa análise mais literal dos primeiros princípios da fé, que é amparado numa leitura rigorosa do livro de Genesis que está contido na Bíblia, a convicção de que o mundo e tudo que nele existe foram criados por Deus, e por isso, se conectam a esse ser Divino é levada a cabo. Dentro dessa cosmovisão, tudo, todos, podem ser considerados Sagrado, pois, todos nós, estamos em pé de igualdade perante a criação, já que fomos criados a Sua imagem e semelhança, conforme descrito nesse livro. 

Nesse sentido, as falas e posturas, do Presidente da República, Jair Bolsonaro, entra em contradição com a ideia cristã de “filhos de Deus”, ideia pregada, inclusive, pela doutrina protestante.

“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. (BÍBLIA,
Gênesis 1:26,27)

Segundo um entendimento do reformador protestante, Martinho Lutero, em seu Tratado sobre a liberdade cristã esse Deus não fará distinção já que a Salvação é dada como “graça” e, a partir da “fé” e amor ao próximo, a todos os seus filhos. Nesse raciocínio, não faz sentido a distinção entre quem é “cidadão de bem” e possuidor de algum beneficio ou não, pois a Salvação e o perdão são dadivas Divina. Diante do exposto, é possível perceber um possível limite entre a religião protestante e direitos humanos, nos dias de hoje, já que as igrejas têm sofrido influências ideológicas de políticos em suas doutrinas. 

Para problematizar o exposto acima, trago o exemplo do Art. XVI – da Declaração Universal de Direitos humanos, que diz nos itens 1 e 2:

1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.

No atual discurso de alguns religiosos, aos quais nos referimos como religiosos cristãos fundamentalistas, o papel da mulher não corresponde ao ideário descrito do referido artigo XVI da Declaração Universal de Direitos Humanos. Corroborando com essa interpretação, temos um texto bíblico, no antigo Testamento, que elucida, muitas vezes, uma mulher submissa que foi criada, a partir, da costela de um homem. Assistimos retrocessos, como o caso que ficou famoso, envolvendo, o Bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, que, em algum tempo atrás, desencorajou suas filhas e fiéis a não estudarem numa faculdade. Segundo o pastor neopentecostal, a mulher deve se preocupar em arranjar um bom casamento, e estar sempre numa posição escolar inferior a do homem, utilizando as próprias filhas como exemplo, fazendo alusão à misoginia.

Todavia, durante a passagem de Jesus pela terra, segundo a Bíblia, ele nos trouxe outra noção sobre o papel da mulher. Num contexto judaico, onde a mulher não desfrutava de nenhum valor. Jesus quebrou regras e paradigmas. Pois, ele conversava com mulheres samaritanas em público, também, falava com elas assuntos religiosos, o que era extremamente proibido na época. A figura de Maria Madalena nos traz a reflexão, que pecados poderiam ser cometidos, tanto por mulheres, como também por homens, conforme relatado em (João 8:1-10). Jesus nos habilita para uma nova forma de pensar a mulher na sociedade. Agora, como um indivíduo portador de direitos e igualdade de gênero. Ideia compartilhada por igrejas protestantes com ideologias mais progressistas.

Bem, mais tarde, com a Reforma Protestante, mesmo Lutero sendo um homem do seu tempo, com características conservadoras. A mulher começa a ganhar, aos poucos, destaque. Inclusive, nos quadros eclesiásticos. Seja por meio de escrita, cantos, e até em trabalhos teológicos, propriamente ditos. 

Diante do exposto, até o momento, quem poderá garantir os direitos humanos, afinal? Seria ele de inteira responsabilidade do Estado? A Declaração de Direitos Humanos elucidada pela ONU é feita para ser um parâmetro mínimo de civilidade. Todavia, sabermos que existem criticas a ela, por se tratar de uma ideia cristã universal de direitos feita para povos diversos e plurais. Os teóricos que pensam sobre isso, nos alertam para seu limite, pois alguns artigos da Declaração podem estar bem longe dos ideários de alguma civilização ou sociedade. Nesse sentido, sabemos que a Modernidade nos trouxe o pluralismo, em lugar da secularização, como acreditava Peter Berger, e é o pluralismo religioso, de ideias e cultural que se baseia a crítica na “tal” universalização dos direitos humanos. (BERGER, ????)

Mas, devemos superar essa observação para avançarmos, pois a Declaração é um norte para os direitos, e como diz um grande amigo: “é o que temos para hoje!”, Ela deve ser cobrada a nível nacional e quando violados, pelo próprio governante, as denuncias deverão ser elucidadas a ONU, que poderá fazer um papel de intermediação, ou de penalização das nações que assinam essa declaração, como é o caso do Brasil. As religiões como instituições podem contribuir na promoção dos direitos humanos, poderão fazê-la, baseando-se em textos bíblicos, onde a mensagem de Deus sobre reerguer esse homem humilhado, restituindo-lhe a sua semelhança com Deus. Para exemplificar recorro a conhecida parábola do Bom Samaritano e ao livro dos Salmos, no: 146: 6-9 que diz: Deus

“que fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há, e que mantém a sua fidelidade para sempre! Ele defende a causa dos oprimidos e dá alimento aos famintos. O Senhor liberta os presos, o Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama os justos. O Senhor protege o estrangeiro e susta o órfão e a viúva. Porém, frustra o propósito dos ímpios.” 

Todavia, não poderia terminar essa citação emblemática sem problematizar com a declaração abaixo que, hoje, parece atual, contemporânea e aceita por muitos protestantes. 

“Hoje, os cristãos estão à frente deste país. Prometo que nunca me ligarei a partidos que querem destruir o Cristianismo. Queremos reencher nossa cultura de espírito cristão. Queremos queimar todos os recentes desenvolvimentos imorais na literatura, teatro e imprensa, enfim, queremos queimar o veneno da imoralidade que surgiu em nossa vida e cultura pela abundância liberal no passado.” ADOLF HITLER (1939)

Não poderia terminar este ensaio sem vislumbrar um norte para a atual problemática exposta até aqui. Para isso, lanço mão do título de um famoso discurso de Martin Luther King: “I have dream!” RIBEIRO (2010) 

“A “nova forma de ser Igreja” relacionada à Teologia da Libertação está vinculada às possibilidades de transformação social e política evidenciadas em especial entre os anos 1960 e 1980 uma sociedade igualitária, participativa e firmada nos princípios de justiça” p. 29 Na esperança de as religiões encontrem um norte rumo a libertação do povo que ela diz representar em nome de Deus. Um mundo onde prevaleça o amor, a fraternidade, a igualdade e a justiça social.” p. 29


4 – REFERÊNCIAS

ANISTIA INTERNACIONAL. maio de 2019. Disponível em: <https://anistia.org.br/noticias/discurso-da-administracao-de-bolsonaro-contra-direitos-humanos-comeca-se-concretizar-em-medidas-nos-primeiros-meses-de-governo/>. Acesso em: 10 de nov. de 2019.

BERGER, Peter. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2007.

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969. 

BOFF, BOFF, Leonardo, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1986.

BOFF, Leonardo, Fundamentalismo a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

LUTERO, Martinho. Tratado sobre a liberdade cristã: In: LUTERO, M. Obras selecionadas, vol II. São Leopoldo: Sindoal/Corcórdia. Pp 272-274

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Declaração Universal dos direitos Humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/>. Acesso em: 10 de out. de 2019.

RIBEIRO, Claudio, de Oliveira. O princípio Pluralista. UNISINOS. São Leopoldo: Cadernos Teológicos Pública, Ano I, n. 1, 2004.

RIBEIRO, Claudio de Oliveira. A Teologia da Libertação morreu? Fonte Editora. São Paulo, 2010.

RODRIGUES, Elisa. A formação do Estado secular brasileiro:  notas sobre a relação entre religião, laicidade e esfera pública. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 29, p. 149-174, jan./mar Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2013v11n29p149> Acesso em 30 de nov. de 2019

IMAGENS E HISTÓRIA. 24 de set. de 2019. Disponivel em <https://www.facebook.com/imagenshistoria2/posts/456460858409878/>. Acesso em: 02 de dez de 2019. 


Flávia Rabelo Beghini é pedagoga formada pela UFJF e especialista em Educação Infantil e Tecnologias na Educação. Graduanda em Ciência da Religião na UFJF adora escrever nas horas vagas.



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