Sobre essas Cabeças Enterradas

Na minha infância a cabeça era do boi. Foi assim que ela me chegou por tradição oral, ouvida de bocas de avó, de mãe, de vizinhos. 

Enterrada.

Em algum lugar dessa cidade em que nasci estaria a tal cabeça de boi. Ou mais de uma, sei lá. De tal modo que, por conta desse enterro, as coisas em Juiz de Fora não iriam para frente, independentemente do projeto ou empreitada, se aqui fossem nascidas… 

Minto! Com exceção de pastel. Diziam que vender pastel funcionava.

No imaginário de uma criança que nunca sonhou em vender salgado, é claro que a imagem da cabeça enterrada tinha peso.

Volta e meia, a tal lenda reapareceria em conversas informais, com mais ou menos precisão histórica: um causo ou outro sobre a falência das empresas têxteis que alavancaram a então Manchester mineira; rumores sobre um complô de empresários paulistas que teriam investido na roça grande do interior, fazendo nascer a jovem Belo Horizonte, e dessa forma conseguindo quebrar a dinâmica concorrente do eixo Rio de Janeiro – Zona na Mata; e, finalmente, o triste destino da quase-capital de Minas Gerais, lugar fronteiriço onde o gosto pelas coisas “de fora” já teria nascido na conta do tal “Juiz” que dá nome a esse canto do mapa.

Após a faculdade de Letras, iniciei um trajeto nas artes cênicas da cidade. Por escolha consciente, de mente e alma, eu estava decidido a fazer do teatro o meu projeto de vida. E com a força que esse tipo de decisão tem: sim, estava funcionando!

– Menino, você é bom! Daqui a pouco, pra crescer, você vai sair de JF! – me disseram, mais de uma vez, amigos e mestres, com todo carinho.

No imaginário de um artista querendo se achar no mundo, é claro que essa frase tinha peso.

Afinal, minha cidade tem meio milhão de habitantes! Como não é possível construir mercado para cultura aqui? Temos uma importante universidade federal, temos razoáveis equipamentos culturais… temos até uma lei de incentivo municipal! Por que não pode dar certo aqui? Pode, é claro que pode. Mas palavra tem peso. E as cabeças de boi, de burro e de bode se aprofundaram no discurso e contaminaram os lençóis freáticos das nossas crenças.  

Hoje, sobre essas cabeças enterradas, eu só tenho a dizer: desenterrem-se. 

E que minha escolha de alma tenha força para provocar aqueles que também querem ficar, e a partir daqui a gente possa construir o nosso caminho no mundo, seja com teatro ou com pastel, com psicologia ou linguística, com fisioterapia ou farmácia, com botequim ou engenharia.

E para os que acham que se trata de puro otimismo, eu digo que é mais-que-otimismo é “excelentismo” mesmo, questão de sobrevivência feliz da alma. 

Não sei você, quem me lê nessa revista de cultura… mas, hoje, eu desenterro de vez as minhas cabeças de boi.


Felipe Moratori é ator, dramaturgo e diretor teatral, Felipe é um dos fundadores da Sala de Giz. Mestre em Artes Cênicas pela UFOP, integra o Núcleo Dançantes, grupo de investigação em poéticas do corpo coordenado pela atriz-pesquisadora Ana Cristina Colla, do Lume teatro (Campinas – SP).

Licenciado em Letras pela UFJF, publicou nacionalmente dois textos teatrais pela editora paulista Giostri. Em sua formação, passou pelos mestres Ana Cristina Colla, Renato Ferracini, Jesser Souza (Lume teatro), Denise Stoklos (Brasil), Norberto Presta (cia Via Rossi – Argentina/Itália), Julia Varley e Eugenio Barba (cia Odin Teatret – Dinamarca).

Hoje, além de escrever as dramaturgias da companhia, é professor e coordenador dos projetos artísticos do espaço cultural Sala de Giz.



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