DJONGA, CORRA: UMA BREVE E MUSICAL ANÁLISE HISTÓRICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL.

                                                  Prof. Me. Diogo Tomaz

SÓ PRA COMEÇAR         

Pra eles nota seis é muito
Pra nóis nota dez ainda é pouco
Pros meus qualquer grana é o mundo
Pros deles qualquer grana é troco

Tentar estabelecer artistas ou musicas como definidoras de uma época é sempre algo arriscado. Mas, cedendo a essa pretensão, podemos afirmar que hoje no Brasil o Rap é o gênero mais relevante e crítico – uma prateleira que foi ocupada durante muito tempo pelo Rock, que tem se mostrado cada vez mais comercial e conservador em suas letras e atitudes (claro, existem alguns sopros de esperança que são exceções) -. Por ser professor, convivo diariamente com alunos e alunas entre 12 e 18 anos e, algo que me chamou a atenção nesse convívio, foi descobrir alguns nomes que até então para mim eram meros desconhecidos musicais. BK, Baco Exu do Blues, Rincon Sapiência, Flora Matos, Drik Barbosa, Djonga… seus nomes e letras circulavam pelas minhas aulas e redes sociais. Mas eu não tinha ideia de quem eram.

            Aos poucos o interesse e a curiosidade por aquele som foi surgindo. Comecei pelos clássicos que já conhecia: Rael, Emicida, Criolo, Racionais… Gostei! As rimas, a batida, as críticas ao racismo, à pobreza, às injustiças e a todo autoritarismo existente me atraiu. Fazia jus ao significada da palavra rap, que nada mais é do que uma sigla para rhythm and poetry – ritmo e poesia. Uma palavra que remonta ao século XIV, referindo-se a algo como “bater” ou “criticar” e que se popularizou entre os negros de algumas cidades dos Estados Unidos.

            Como todo bom historiador e amante de música, passei a ouvir aqueles novos artistas – pelo menos para mim eram – de forma crítica e atenta. Todos muito bons, mas, o que mais me chamou atenção foi o Djonga. Por isso, tive a ideia de escrever esse texto sobre a excelente música Corra analisando-a de forma histórica.

MAS QUEM É DJONGA?

            Se você não conhece e nem ouviu o Djonga, fica a dica: Vai no Youtube! – ou continua lendo esse texto -. Gustavo Pereira Marques, um mineiro de Belo Horizonte que trancou a faculdade de História da Universidade Federal de Ouro Preto para seguir com o Rap, recebeu esse apelido de um amigo, que fazia trocadilhos com as palavras “djonga” e “bironga”. Na véspera do lançamento do primeiro single, Gustavo ainda não tinha um nome artístico e foi justamente o “djonga de bironga” que lhe veio à cabeça. 

            Suas músicas são estimulantes, agressivas e conscientizadoras das dificuldades de uma grande parte da sociedade brasileira que foi abandonada pelo poder público. Seus trabalhos colocam o dedo – ou dedos – na(s) ferida(s) que a maioria dos artistas brasileiros preferem fingir que não veem. Seu álbum “Heresia” de 2017 foi considerado um dos melhores do ano pela revista Rolling Stone. “O Menino Que Queria ser Deus” de 2018 foi muito bem recebido pela crítica, e é nesse álbum que se encontra a música central desse texto.

CORRA!

            Fazendo referência ao filme de terror “Corra” de 2017, dirigido por Jordan Peele, a sétima música do álbum fala sobre racismo estrutural desde a colonização do Brasil pelos portugueses até os dias atuais. A música possui um pouco mais de quatro minutos e parece ser um diálogo entre um casal negro sobre o racismo e escravidão.

“Amor, olha o que fizeram com nosso povo. Amor, esse é o sangue da nossa gente. Amor, olha a revolta do nosso povo. Eu vou, juro que hoje eu vou ser diferente”.

            A escravidão foi uma prática tão antiga quanto cruel e aplicada de formas diferentes entre os povos que a adotaram. Os árabes adquiriam africanos para negociá-los no Mediterrâneo muito antes dos europeus. “Estima-se que entre 650 e 1600, os árabes escravizaram 4.820.000 escravos” [1]. Na Europa, os portugueses foram pioneiros no comércio de escravos africanos através do Oceano Atlântico, brevemente seguido por holandeses, franceses e ingleses. O tráfico negreiro realizado pelos europeus a partir do século XVI uniu interesses de grupos escravistas em três continentes: África, Europa e América. Formava-se assim, um comércio triangular, os navios europeus levavam produtos das colônias e da metrópole para a costa africana, que eram trocados por escravos. Em seguida, esses escravos eram vendidos para os colonos americanos, que os utilizavam em suas lavouras, minas ou outras atividades.

“Éramos milhões, até que vieram vilões / O ataque nosso não bastou / Fui de bastão, eles tinham a pólvora / Vi meu povo se apavorar / E às vezes eu sinto que nada que eu tente fazer vai mudar”.

            Com o tráfico, milhões de africanos eram arrancados a força de sua terra e transformados em escravos. As estimativas sobre o total de escravos trazidos para o Brasil variam muito, pesquisadores dizem algo por volta de 3 e 5 milhões entre os séculos XVI e XIX, nenhum outro lugar no mundo recebeu tantos escravos quanto o Brasil.

Ao longo de mais de três séculos, navios portugueses ou brasileiros embarcaram escravos em quase 90 portos africanos, fazendo mais de 11,4 mil viagens negreiras. Dessas, 9,2 mil tiveram como destino o Brasil. Para toda a América estima-se entre 10 a 20 milhões de escravos entre os séculos XVI e XIX. Os dados são da The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esforço internacional de catalogação de dados sobre o tráfico de escravos – que inclui, entre outros, a Universidade de Harvard [2].

Aquela noite eu te ensinei coisas sobre o amor / Durante o dia eu só tinha vivido o ódio

            As viagens que traziam os africanos escravizados ao Brasil eram longas e exaustivas: “do continente africano até a Bahia levavam cerca de 40 dias no mar; até o Rio de Janeiro, cerca de dois meses” [3]. Devido às péssimas condições do transporte e os maus-tratos, calcula-se que entre 5 e 25% dos escravizados morriam durante a viagem. Por isso, os navios foram apelidados de tumbeiros, uma referência a tumba ou túmulos.

Querem que eu me contente com nada / Sem meu povo tudo não existiria / Eu disse: Óh como cê chega na minha terra / Ele responde: Quem disse que a terra é sua?

            Aos que sobreviviam, mais uma difícil jornada, reconstruir suas vidas em um novo continente. Muito entravam em uma profunda depressão associada à violência da escravidão e à saudade de sua terra natal. Esse estado psicológico ficou conhecido como banzo e provocava apatia, inanição e a morte. Costumavam ser diferenciados pelos colonos de acordo com o trabalho que desempenhavam: eram classificados como escravos de ganho, do eito ou domésticos. Os de ganho eram aqueles que viviam nas cidades e realizavam trabalhos temporários em troca de um pagamento, que normalmente era revertido para o seu dono. Os escravos do eito trabalhavam nas lavouras ou minas. Pelo excesso de trabalho e pelos castigos, faleciam depois de cinco a dez anos de trabalho forçado. Os escravos domésticos eram escolhidos pelos senhores para trabalharem em suas casas como jardineiros, babás, cozinheiras, etc.

SÓ PRA FECHAR

Após essa breve análise de pontos específicos da letra, percebemos que quando “pensamos historicamente”, notamos que a realidade social é construída pelos seres humanos. Não é por um acaso do destino, mas sim uma construção cultural dinâmica, mutável e aberta a novas possibilidades.

Diante disso, ESTUDEM HISTÓRIA. Ao fazer isso, podemos despertar a consciência em cada um de nós para construir uma sociedade mais justa, com menos desigualdades entre as pessoas, independentemente da idade, gênero, origem, cor e religião.

            Para finalizarmos nosso assunto, gostaria de apresentar alguns dados estarrecedores, extraídos do site da Revista Carta Capital [4], que mostram o abismo racial no Brasil. “Segundo dados do IBGE, mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras. Só em 2089, ou seja, daqui a 69 anos, brancos e negros terão uma renda equivalente no Brasil. A projeção é da pesquisa “A distância que nos une – Um retrato das Desigualdades Brasileiras” da ONG britânica Oxfam, dedicada a combater a pobreza e promover a justiça social. Segundo a pesquisa, em média, os brasileiros brancos ganhavam, em 2015, o dobro do que os negros: R$1589, ante R$898 mensais. Os cálculos foram feitos com base dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), considerando rendimentos como salários, benefícios sociais, aposentadoria, aluguel de imóveis e aplicações financeiras, entre outros.

Homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no País. A população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios, de acordo com informações do Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Brasil abriga a quarta maior população prisional do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Tratam-se de 622 mil brasileiros privados de liberdade, mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes. Mais da metade (61,6%) são pretos e pardos, revela o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

Na contramão dos demais países, porém, a taxa de aprisionamento no Brasil não está diminuindo. Entre 2004 e 2014, o índice cresceu 67%. A taxa de superlotação por aqui também é maior: 147% no Brasil, ante 102% nos Estados Unidos e 82% na Rússia”.

            Enfim, quando vemos um acréscimo nos debates nacionais e internacionais de combate ao racismo, evidenciamos também uma crescente opressão e violência por fatores étnicos. É necessário conhecer as formas de estruturação do racismo, só assim poderemos pensar em maneiras eficientes de combatê-lo.


[1] SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p.671.

[2] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45092235

[3] BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola (1602 – 1686). São Paulo: Nacional, 1973, p.244.

[4] Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/seis-estatisticas-que-mostram-o-abismo-racial-no-brasil/


Diogo Tomaz é professor e mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, ilustrador quanto tem tempo e headbanger a todo momento.



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Um comentário

  1. Muito bom o artigo do Prof. Diogo. O RAP ainda é visto com os olhos do preconceito, seja este social, racial, étnico, etc. Do ponto de vista educacional, as letras são ótimas não só para que os alunos aprendam a História, de uma perspectiva dos que foram e ainda são subjugados, mas também para trabalhar a estética literária, a poesia, além de conceitos sociológicos.

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