Carnaval: a festa da libertação

Historicamente o Carnaval é a festa em que o proibido passa ao permitido, com certa liberdade moral concedida pelas instituições do Poder sempre uma vez por ano. Quando a festa surgiu, em finais da Idade Média, como data do calendário da Igreja Católica em que, antes de cumprir os sacrifícios da Quaresma (em que era restrito o consumo de carne, daí o nome derivativo do latim vulgar, carnaval, ou “vale carne”), as pessoas poderiam aproveitar os últimos dias de bonança, o Poder era religioso e a concessão moral era a própria festa. 

Com o tempo, o hedonismo tomou conta do Carnaval e surgiram os bailes de Veneza, em que a manifestação da sexualidade não era vigiada pela sociedade, permitindo às pessoas viver a paixão e o sexo, desde que fantasiadas e mascaradas, como conta a tradição. Surgida na Itália, ela rapidamente se espalhou pela Europa e chegou a Portugal, no que foi trazida ao Brasil por meio da colonização.

Entretanto, um elemento diferenciaria o Brasil e seu Carnaval de todos os outros no mundo: a escravidão. Trazidos em cativeiro pelos portugueses, os povos africanos não poderiam celebrar suas culturas, a menos que clandestinamente, o que acabou resultando em assimilações sincréticas das culturas iorubá, banto e malê, principalmente, pelo catolicismo, daí advindo as religiões de matriz africana e os ritmos, personagens e festas africanas, como o samba, a baiana e o dia de Iemanjá.

Em sendo assim, o Carnaval e sua permissividade foram o canal pelo qual a cultura africana se manifestou entre a elite colonial branca, ao longo dos dois séculos de Brasil independente, até chegar à legitimação do samba e sua apresentação nos blocos de rua, que evoluiu para as escolas de samba e suas alas e fantasias (replicando aí o modelo italiano) que, por esconderem-se atrás da máscara, permitiam aos povos negros contarem suas histórias e manifestarem sua cultura. Nesse longo percurso, aí temos o Carnaval mais importante do mundo.

A festividade popular mais conhecida da América Latina, ao lado do Dia dos Mortos mexicano, tem sua semelhança com a data nortenha no sentido de que, igualmente, o sincretismo com o Dia de Finados do calendário católico permitiu aos povos originários do sul da América do Norte celebrar sua cultura de reverência à morte e o espírito dos ancestrais, diferentemente do conceito católico que previa a oração pelos mortos e visita aos seus túmulos, acompanhada de missas com intenções de graças.

Hoje, qual seria o “permitido” do Carnaval brasileiro? Em tempos de violação do direito à festa pelo próprio presidente da República e por governadores de Estado, segue a folia sendo o espaço de contestação aceita goela abaixo pelo Poder, quando o povo pode manifestar-se contra o Golpe de Estado de 2016 ou o assassinato acobertado da vereadora Marielle Franco, nos últimos dois desfiles mais importantes das escolas de samba cariocas: Tuiuti em 2018 e Mangueira em 2019. Os quais, ainda que frontalmente contra o Poder estabelecido, ganharam a visibilidade da Rede Globo.

Portanto, o Carnaval, de séculos em séculos, não perde a sua essência de festa em que o proibido passa ao permitido, ainda que uma vez ao ano. Porém, mostra a história que mesmo esse “uma vez ao ano” pode se tornar uma ferramenta importante na luta por uma sociedade mais aberta e ciente dos direitos do próximo, no caminho para a libertação ante as opressões. 

Que venha o carnaval 2020!


Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para os jornais Brasil 247 e El Siglo de Chile. Foi correspondente internacional na China em 2019.



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