Retratos de um passado

“As mulheres não devem sair de suas residências, se o fizerem, não devem usar trajes elegantes, produtos cosméticos ou atrair atenção desnecessária. Caso venham a usar “vestes elegantes, adornadas, apertadas ou atraentes”, jamais conhecerão o paraíso”.

“Não é permitido às mulheres trabalhar fora do lar ou frequentar  escolas”.

“Nenhum tipo de música é permitido. Donos de estabelecimentos ou motoristas portando fitas cassete serão presos. É proibido tocar tambores”.

“É proibido rir em público”.

“Pipas são proibidas”.

“Fotografias e retratos são proibidos. São considerados formas de idolatria e devem ser retirados dos hotéis, estabelecimentos comerciais e veículos”.

“São proibidas a execução de músicas e a dança em festas de casamento”.

“Todos devem rezar. Todas as pessoas são obrigadas a comparecer à mesquita. Jovens vistos em estabelecimentos comerciais serão presos imediatamente”.

 “Mulheres afegãs”. Harriet Logan, Cabul, 1997.

 Esses eram alguns dos decretos que foram impostos pelo regime Taleban, que deu início em Setembro de 1996 em Cabul, Afeganistão. Um ano depois, a fotógrafa inglesa Harriet Logan, decidiu ir até o país para registrar as mulheres que lá viviam e suas condições de vida, apesar de toda a repressão das leis impostas, além de todo o perigo que representaria, não apenas para ela, mas como também para as mulheres que arriscariam sua vida ao relatarem ao que estavam sendo submetidas.

“Fahrida tinha catorze anos e vivia com seus pais, suas cinco irmãs e três irmãos. Ela perdeu uma perna durante um ataque aéreo dos mujahideen, que também matou as duas crianças com quem brincava”.  Harriet Logan, Cabul, 1997.

Fahrida 1997

  “Em 1997, as meninas da escola de Latifa eram obrigadas a esconder seus livros dentro de cópias do Corão ou sob seus véus. Elas, assim como seus pais, corriam o risco de serem espancadas simplesmente pela vontade de estudar”. Harriet Logan, Cabul, 1997″. Fotografar no país era tido como algo ilegal, então Harriet precisou dizer que estava presente para registrar a “destruição causada

pela guerra”. Felizmente, acreditaram e ela pode entrevistar um certo número de mulheres graças à PARSA (Physiotherapy and Rehabilitation Support for Afghanistan – Auxílio de Fisioterapia e Reabilitação para o Afeganistão), o que seria uma pequena organização não governamental, que atua desde 1996, com o objetivo de melhorar a vida das pessoas.

 Foram muitos contratempos encontrados pela fotógrafa para realizar esse trabalho, como ser barrada em fronteiras dentro do país, desafiar leis, arriscar a própria vida, tensas viagens pelas montanhas do Afeganistão cercadas por homens inteiramente armados, entre tantos outros ocorridos ao longo do caminho. Mas isso não a desanimou.

Meninas da escola de Latifa, 1997

Algumas mulheres afegãs se negaram à entrevista. Tinham muito medo do que pudesse acontecer se fossem descobertas. Já outras, tinham sede por quem a pudessem ouvi-lás.

“Fomos esquecidas e precisamos do direito de falar. Se ninguém ouvir o que temos a dizer, nada irá mudar”. Relatou uma das mulheres afegãs entrevistada por Harriet.

“Aqela”. Harriet Logan, Cabul, 1997.

“Conheci Zargoona num quarto minúsculo e muito frio, na casa de seu sogro. Não havia aquecimento ou vidraças nas janelas. Sentamos sob cobertas para tentar nos aquecer. Zargoona chorou o tempo todo em que estive lá”. Harriet Logan, Cabul, 1997.

Zargoona, uma viúva, revelou que não podia tratar seu câncer porque a lei dos Taleban proibia que as mulheres trabalhassem em troca de dinheiro. Muitas delas perderam seus maridos na  guerra, e precisavam por si só, sustentar a casa. Como então fazer sem trabalho?

Zargoona, 1997

 “Antes da morte do meu marido, há onze anos, eu trabalhava em casa, costurando para pessoas do bairro. Meu marido era um oficial do alto escalão do governo, e naquele tempo, vivíamos bem. Morávamos aqui nesta casa e nossa vida  era boa. Agora, tenho dois meninos e três meninas para sustentar sozinha.

Aqela, 1997

 Eu trabalhava para a CARE (uma organização não governamental norte americana) antes da chegada do Taleban. Costurava, bordava e ensinava meninas a costurar. Dezessete dias após a chegada do Taleban, eles acabaram com o projeto e enviaram uma norte-americada da CARE às nossas casas para retirar nossas máquinas de costura. Ela estava constrangida, disse não saber o que estava acontecendo ou se nos veríamos novamente. Eu fiquei muito infeliz. Voltei a costurar e também fazia comida para meus filhos venderem no bazar. Eu odiava o Taleban por nos impedir de trabalhar. Hoje em dia (2001), ganho cerca de 20 dólares por mês. Com esse dinheiro, consigo sustentar minha família, mas é muito pouco para sobreviver.

Um dia, fui ao mercado para comprar farinha. Havia uma grande aglomeração de pessoas ao lado da loja, inclusive muitos homens. De repente, alguns Talebans chegaram e me bateram nas costas e pernas. Eles me cortaram muito com seus chicotes. O espancamento durou dois ou três minutos. “Por que você está com todos esses homens”?, eles gritavam. “Você não os conhece”! Tentei explicar que só queria comprar farinha, mas eles fingiam não entender o que eu dizia, apesar de obviamente compreenderem o Dari. Tenho esta cicatriz em minha perna como lembrança. Outro dia, vi alguns deles  espancando um menino muito novo por carregar um rádio”. disse Hamida em sua entrevista no ano de 2001.

Hamida, 2001

Hamida tem quarenta e três anos de idade e trabalhava como costureira e tapeceira. Ela tem cinco filhos”. Harriet Logan, Cabul, 2001.

Harriet voltou ao Afeganistão no ano de 2001. Foi à procura das mulheres que havia conhecido em 1997, em sua primeira viagem ao país. E se deparou com muitas marcas e traumas de mulheres que haviam sobrevivido a tantos acontecimentos trágicos, perdas e tristezas de guerras e  do que regime, que finalmente, havia chegado ao fim.

Apesar da grande luta contra a desigualdade, ainda precisamos lutar por conquistar muitos degraus. Se falando de Brasil, em relação aos rendimentos médios do trabalho (CMIG 13), as mulheres seguem recebendo cerca de ¾ do que os homens recebem. Contribui para a explicação deste resultado a própria natureza dos postos de trabalho ocupados pelas mulheres, em que se destaca a maior proporção dedicada ao trabalho em tempo parcial (IBGE, 2018).

Apesar da existência de cotas, em 20.12.2017, o percentual de cadeiras ocupadas por mulheres em exercício no Congresso Nacional era de 11,3%. No Senado Federal, composto por eleições majoritárias, 16,0% dos senadores eram mulheres e, na Câmara dos Deputados, composta por eleições proporcionais, apenas 10,5% dos deputados federais eram mulheres. Paraíba, Sergipe e Mato Grosso não tinham nenhuma mulher exercendo o cargo de deputada federal na data. A proporção de mulheres nos parlamentos nacionais e também na chefi a dos governos locais (prefeituras) está no rol de indicadores da Agenda 2030, no bojo do objetivo 5: “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” (IBGE, 2018).

Em 2018 – 12 anos após a criação da Lei Maria da Penha – somente 2,4% dos municípios brasileiros contavam com casas-abrigo de gestão municipal para mulheres em situação de violência doméstica. Dos 3.808 municípios com até 20 mil habitantes, quase 70% do total de municípios no Brasil, apenas nove possuíam casas-abrigo (IBGE, 2019)

O Ministério da Saúde, registra que no Brasil, a cada 4 minutos, uma mulher é agredida por ao menos um homem e sobrevive. No ano de 2018 foram registrados mais de 145 mil casos de violência  em que as vítimas sobreviveram (SINAN , 2019).

Em um mundo onde, não apenas as mulheres, mas que geralmente  acabam por ser a classe mais afetada, sempre sendo abusadas da pior maneira, seja no Afeganistão ou em qualquer outro lugar, de maneira verbal, psicológica, física ou emocionalmente, ter atitudes como a dessas mulheres afegãs, que em meio ao medo e terror resolveram não se calar, é que hoje em dia podemos ter um pouco mais de direito e igualdade. Existem grandes avanços feitos pela igualdade de gênero, pelos direitos humanos, nos nichos de trabalho, na área da política, lugares antes ocupados de maioria por homens. Diante de uma sociedade machista e patriarcal e de uma justiça que diversas vezes falha com o seu papel de proteger e punir atos hediondos, é que devemos usar exemplos como esse, para que possamos aprender com nosso passado e fazer diferente em nosso presente e ter um futuro com a dignidade e direitos que merecemos. Não temos um regime Taleban no Brasil, mas ainda temos muito por que lutar.

 Harriet Logan, Cabul, 1997.

Harriet Logan cabul, 1997

 Referências:

1.  LOGAN, Harriet. Mulheres de Cabul. Edição 1. São Paulo: Geração Editorial, 2006.

2. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf – Estatísticas de Gênero – Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil

3. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25518-mesmo-com-lei-maria-da-penha-somente-2-4-dos-municipios-oferecem-casas-abrigo – Agência de Notícias IBGE

4. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-1-caso-de-agressao-a-mulher-a-cada-4-minutos-mostra-levantamento.shtml -Folha de São Paulo


Caroline Stabenow é fotógrafa, agente cuidadora e voluntária. Quando tem fome e sono vira um bicho. É amante de literatura, do mar, de pessoas apaixonadas pelo que fazem, música, dança, vira latas, pão de queijo e um bom café preto.



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