18. Aprendizado

A casa estava trancada, a porta principal obstruída por um sofá e uma cadeira. Eu me olhava através de nossa foto de casamento posta na parede. Tinha a convicção de que o fim estava próximo. Como amar uma pessoa tão fortemente e não ser retribuído? Ver no olhar dela a fissura da nossa distância enquanto outro olhar toma conta. Não estava preparado para enfrentar este tipo de vida. Decidi-me, assim, condecorar-me com o vazio pleno, a certeza de que, com o passar dos anos, seria apenas uma recordação ingrata. O que me movia não era mais meu eu consciente; era o desespero, era o eco de não poder entrar em contato, me mostrar indiferente, e logo depois de alguns dias saber que ela expunha as nossas fraquezas para outro. Está pronto aí o despertar para uma solução que julgava pertinente. Ah! Como queria naquele momento ter uma arma para acabar de vez com tudo (e eu sei que essa realmente é a solução). O que me restava, porém, eram vários remédios moídos que, pesquisados, agindo no organismo por um bom tempo, poderiam realizar a grande misericórdia. Peguei uma caneta pilot e risquei alguns dizeres no vidro que separava a nossa imagem do resto do mundo, o mesmo que refletia a bela história de uma família que não possuía mais. Medo? Não, não havia medo. Apenas o choro convulsivo de alguém que não soube perpetuar o que sempre sonhou. Perdido, sozinho, jogado no tempo da quietude contemplativa do nada – e acostumado com o burburinho de uma casa cheia de vida. O melhor seria aquele ato, por mais desesperado que fosse, para mostrar, em derradeira instância, que aquele amor tão negado e tão posto em dúvida era sincero e imortal. Essa era minha maneira de mostrar que tudo estava voltado para aquela chama, mesmo que depois eu a soubesse doentia, mas ardente e irresistivelmente agarrada a um senso de realidade amorosa e persistente. Olhei para aquela xícara cheia de pó, cheiro fármaco, de química mórbida, ao lado do leite. Derramei o conteúdo à xícara, diluindo levemente as pastas brancas que se formavam. Estava pela metade. Fiz uma careta diante daquela atmosfera nunca antes forjada. Meu Deus, me dê forças, já não há sentido para nada. Tomei o primeiro gole sentindo ânsias de vômito, o gosto traduzia toda a dor vivida naqueles intensos dias. Vi que ainda sobrava bastante. Abri a porta do quarto e corri à geladeira para buscar água, não poderia vomitar naquele momento, não naquele momento, seria um desperdício enorme diante de tanta preparação. A água arrefeceu um pouco o amargor. Coloquei mais um pouco de leite e mexi com a pequena colher, que reluzia, côncava, os meus sentidos já alterados. Encostei a porta do quarto, esquecendo-me de fechá-la à chave. Tirei a bateria do meu celular, jogando-os na escrivaninha e ofereci ao corpo a última sentença da xícara. Deitei-me na cama desalinhada. Comecei a chorar já de saudades, pensamentos me vieram, Meu Deus, leve-me daqui, não consigo mais, minha dor é lancinante. O meu corpo todo começou a tremer. Minhas vistas embaçaram e perdi, em poucos minutos, a consciência.

Comparecemos ao local onde em contato com a solicitante esta relatou que é casada com o autor, contudo estão em faze de separação conjugal, sendo que na data de hoje por volta das 13:00hs tomou conhecimento através da mãe do autor Angelina das Dores Viera, que este postou uma mensagem na rede social da internet “que estava despedindo da família”, uma vez que não concorda com a separação conjugal. No local a família e nós policiais militares fizemos vários chamados na residência do autor uma vez que a família não possuía as chaves das portas, e uma vez que o autor não atendeu os chamados e a pedido da família efetuamos o arrombamento da porta da cozinha, fato devidamente testemunhado. O autor foi encontrado no quarto de seu apartamento dormindo supostamente sob efeito de vários medicamentos. Foi encontrado no local uma mensagem escrita no vidro de um quadro do casal no quarto supostamente de pincel atômico na cor preta “viver sem amor não é viver” e ainda uma frase incompleta “vendent su e não renções”. E cinco caixas de medicamentos, as quais foram encaminhadas pela unidade do Samu USB-01 funcionária técnica de enfermagem Adriana, que compareceu no local e socorreu o autor ao hospital Monte Sinai, sendo o autor atendido na ficha nº 1538452-5 Dra. Feliciana CRM-MG 99875, ficando o autor sob cuidados médicos e a família orientada quanto as demais providências policiais.

Acordo. Ciente de que ainda não acabou. E uma grande luz amarelada do teto me cega por alguns instantes. Pela aparelhagem toda ao redor e o corpo tomado de fios, imagino que esteja em uma UTI. Viver é o exercício do caos.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br



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