O SUS e os valores de Alma-Ata

A pandemia começa essa semana no Brasil. O seu momento crítico, que, tudo indica, transcorrerá por toda a segunda metade de abril, chegará a seu pico na virada para maio, quando se estenderá pelo mês seguinte. Todos os olhares da população brasileira, nesse período, estarão voltados para uma instituição: o Sistema Único de Saúde (SUS), que viverá em 2020 o seu maior teste em quase três décadas.

O crédito é Reprodução/FolhadeSPaulo.

O que poucos lembram é que o SUS, apesar de amplamente contestado pelas classes médias e pela mídia, em grande parte sob o lobby das empresas privadas de prestação de serviços em saúde, é uma conquista social das mais importantes da história do Brasil. Antes de 1992, quando foi oficialmente implantado, e de 1988, quando ganhou seu contorno na Constituição, nenhum cidadão brasileiro tinha o direito garantido ao atendimento em saúde. Havia aqueles que o herdavam, porque nasciam em famílias cobertas por um sistema particular, ou conquistavam, com o direito ao atendimento pelo Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) concedido a quem tinha emprego com carteira assinada e à sua família.

O SUS nasceu da luta popular. Nos anos 1970 e 1980, os meios acadêmicos e movimentos sociais ajudaram a formulá-lo com figuras como as do ex-deputado federal Eduardo Jorge e do ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, além do ex-presidente da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) Sérgio Arouca, todos integrantes do Movimento Sanitarista, da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, e da Plenária Nacional de Saúde, que pressionou a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) pela inclusão de um sistema universal, integral e participativo na nova Carta Constitucional.

Baseado na estrutura completa, gratuita e de gestão descentralizada do National Health Service (NHS) britânico, o SUS ainda cumpriu com o que mais tarde seria a referência dos procedimentos da Organização Mundial de Saúde (OMS): os cinco princípios da Conferência de Alma-Ata, de 1979. Realizada na cidade que lhe dá nome, no Cazaquistão então soviético, a Conferência estabeleceu cinco valores fundamentais para a atenção em saúde pública: universalidade, equidade, integralidade, descentralização e participação popular.

Isto significa que o SUS, assim como o NHS, o sistema de saúde cubano, o chinês e outros signatários da Conferência, entende que um sistema de saúde de excelência deve, em primeiro lugar, ser universal, ou seja, atender a todos os seres humanos dispersos por todo o território pelo qual é responsável, e sendo sua gestão descentralizada, o que quer dizer de responsabilidade o mais local possível, visto ser a célula de atendimento aquela que melhor entende as necessidades locais. A equidade, por sua vez, é o que garante a indistinção de origem étnica, de gênero, de orientação sexual, dentre outras formações identitárias que devem ser compreendidas em sua diferença e talvez demandem procedimentos diferentes, mas são tratadas sem diferença na atenção e no zelo necessários a uma cidadã ou cidadão deste país.

Entretanto, neste ano dois desses valores merecerão especial atenção:

Pela integralidade entende-se que um ser humano não é simplesmente um conjunto de funções orgânicas, sendo, acima disso, um ser dotado de individualidades e necessidades que implicam sua saúde, que vão muito além da medicalização. Uma visão integral de saúde estabelece a relação entre a usuária ou usuário do SUS e o seu meio, o ar que respira, o transporte que utiliza, as atividades lúdicas e culturais que desenvolve, o relacionamento com a família etc. Em sendo assim, esse princípio choca-se com os grandes conglomerados empresariais da saúde e da indústria farmacêutica, visto reduzirem o poder da profilaxia por meio da prevenção à doença. Entretanto, é aquele responsável por esvaziar o sistema para que lhe reste suficiente estrutura para atender a todos. 

Ele, hoje, é fundamental, porque, da eficácia das ações preventivas na transmissão do coronavírus e da garantia de qualidade de vida aos que atendem ao chamado pelo isolamento social, depende o sucesso do atendimento nos hospitais. Daí o papel imprescindível do Ministério da Saúde em alertar o Governo federal para, por exemplo, garantir o pagamento dos subsídios aos profissionais sem renda em função da quarentena. Igualmente na manutenção de redes para atendimento psicológico aos que estão confinados, quiçá com aporte governamental ao trabalho de psicólogos e psicanalistas, emergencialmente atendendo a distância. Quanto mais formas de se integrar procedimentos para mitigar o sofrimento coletivo, melhor. Nesses momentos, quem não tem Covid-19 também importa para a saúde pública, uma vez que a sua qualidade de vida e saúde mental durante o confinamento implica a maior adesão às medidas preventivas. Isso é integralidade.

Por fim, a participação popular é normalmente o maior desafio do SUS, já que a maioria das pessoas o veem como deficitário, sobretudo a classe média, que não usufrui de seus benefícios, o que torna opaca a sua visão sobre o sistema, mas impacta a opinião pública ao atuar como formadora de opinião no dia a dia. Sofre, também, com o esvaziamento de seus quadros pelo próprio desinteresse dos médicos brasileiros pelo sistema, sobretudo em suas unidades mais distantes.

E diferentemente do que dizem, o SUS é um sistema de sucesso: em trinta anos, desde sua aprovação, fez a expectativa de vida dos brasileiros saltar de 69 para 73 anos; o número de transplantes de órgãos, de 3.765 para 24.600; o número de atendimentos em ambulâncias, de 10 milhões para 100 milhões. A mortalidade infantil, de 53 por mil nascidos vivos caiu para 21, em 2009. Hoje, estima-se que seja metade disso.

Assim, sem tempo para discutir suas fraquezas ou colher seus logros, mas sustentado por seus cinco pilares, “universalidade, equidade, integralidade, descentralização e participação popular”, o SUS enfrentará seu grande desafio desde a fundação. E, como um sistema que está de acordo com as principais normas de saúde internacionais, ao contrário de outros como, principalmente, o norte-americano, mas também quase todos os demais na América do Sul, encontra-se tecnicamente preparado para atender à superdemanda que virá. 


Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para os jornais Brasil 247 e El Siglo de Chile. Foi correspondente internacional na China em 2019.


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