COVID-19, tecnologia e o escancaramento da divisão social

COVID-19, um vírus invisível aos olhos, mas com o poder de atacar vidas, o sistema de saúde, empresas, empregos e a economia. Esse vírus não causa efeitos colaterais só nos sistemas respiratórios, está causando efeitos colaterais em toda sociedade, na emissão de poluição, nas relações sociais e na cultura. Mais do que isso, ele escancara que a divisão social, que por séculos fazemos questão de perpetuar, é justamente o calcanhar de Aquiles da nossa sociedade. 


Em tempos de pandemia, a sociedade está dividida entre os isolados, que evitam a contaminação e ajudam no achatamento da curva; os que trabalham no fronte em hospitais, farmácias, supermercados, apps de entrega, no campo e na indústria; os que perderam seus empregos ou faliram; os que foram invadidos pelas incertezas causadas por essa crise que parece não ter data para acabar; e, por fim, temos aqueles que estão em estado de negação junto com os que não estão dando a mínima pra tudo que está acontecendo. 


Para os que podem e estão isolados entre quatro paredes, para trabalhar, estudar, comer e conviver, as televisões, computadores e celulares consolidaram seu protagonismo no cotidiano, acumulando novas e mais funções. Para essas pessoas, o acesso a esses instrumentos é forte aliado para a continuidade do trabalho, dos estudos, do lazer.  Se, ao descobrir o fogo, o ser humano passou a cantar, dançar e contar histórias ao redor da fogueira, o Novo Coronavírus levou multidões a cantarem em sacadas, a dançarem em frente à televisão e as crianças a estudarem pelas telas de tablets e computadores.  Claro, isso tudo para as multidões que têm sacadas, televisões, tablets e computadores. 


Não quero ser pessimista, então antes de falar do abismo social e tecnológico que existe entre nós, preciso destacar que durante essa quarentena, inúmeras iniciativas buscam, através da tecnologia, manter nossas mentes ativas, nossos corações aquecidos, nossos lábios cantantes e as famílias unidas. Preciso falar sobre essas iniciativas, pois, até agora, a única forma de combatermos esse vírus é através do isolamento social. E pra esse isolamento ser menos doloroso e dar certo, essas iniciativas são muito bem-vindas. 


Pois bem. Autores, professores e amantes da leitura, durante a pandemia, acabaram ressuscitando os “Clubes do livro” e, com reuniões online, discutem, debatem, criam novas conexões e espalham cultura pelas casas mundo afora. Cantores e comediantes arrecadam toneladas e mais toneladas de alimentos com lives e, ao mesmo tempo, levam a casas de milhões de pessoas alegria, leveza e diversão. 


Os que estão isolados não estão parados. Personal trainers entram ao vivo no Instagram e compartilham com centenas de pessoas aqueles super treinos, que deixam a camisa de qualquer um molhada de tanto suor. Doutrinadores, mestres e doutores estão dando aulas on-line, tudo de graça. Médicos e psicólogos atendem por vídeochamada ou pelo WhatsApp. Aniversários, casamentos e formaturas estão acontecendo por vídeoconferência. 


O isolamento também provocou novas interações. Vizinhos, do mesmo condomínio, que antes não se conheciam, agora usam o grupo do WhatsApp para ofertar ajuda e cooperação; “se você é do grupo de risco, posso te ajudar com as compras, você não precisa sair de casa!”, mensagens assim se espalharam pelo aplicativo. A banda daquele garoto do andar de cima, sabem? Aquele que sempre foi motivo de reclamações nas reuniões de condomínio? Justo ele foi o responsável por mandar a mensagem marcando a cantoria nas janelas do prédio. A pandemia fez quem não fazia questão de se esbarrar no elevador se encontrar ao cantar com as janelas abertas.


Esses dias fiquei sabendo de um grupo de amigos que se reúne aos sábados para dançar e beber “juntos”, cada um em sua casa. Eles criam uma sala de vídeoconferência e por lá fazem o “esquenta”, escolham a live a que vão assistir e depois disso, com o fone de ouvido no volume máximo e a webcan ligada, acompanham os passos de dança uns dos outros enquanto escutam ao mesmo show. Através dos mesmos sites e aplicativos, igrejas, com seus cultos, louvores e orações, mantêm a interação e fortalecem os fiéis ao redor do mundo. Avós com saudade aprenderam na marra a usar esses aplicativos e agora cantam músicas e contam histórias para seus netinhos, cada netinho em uma casa diferente, curtindo a mesma historinha ao mesmo tempo.  


Para as pessoas em isolamento, a agitação das ruas foi parar dentro de casa. Inclusive, esse negócio de quarentena é bem movimentado, né? Quem passou a trabalhar em casa está trabalhando em dobro! O trabalho mudou, e talvez ele nunca mais seja o mesmo. A típica velocidade da revolução tecnológica foi acelerada ainda mais por esse vírus. Por um lado, surgem novas oportunidades; por outro mais precarização! 


Já que estamos falando de boas iniciativas, tenho um exemplo que me surpreendeu. Tenho uma amiga fotógrafa. Em um primeiro momento, parecia que o COVID-19 tinha condenada sua carreira e renda a uma indefinida pausa, mas, depois de algumas semanas no isolamento, ela surgiu oferecendo um novo produto! Começou a fotografar por vídeochamada! De Brasília, fotografou uma grávida nos Estados Unidos (as fotos ficaram ótimas!).  


A tecnologia, de uma forma diferente, fez com que muitos setores da vida continuassem. Era impossível ficar parado, como disse C. S. Lewis, “Se todos nós formos destruídos por uma bomba atômica, deixe-a nos encontrar fazendo coisas sensíveis e humanas – orando, trabalhando, ensinando, lendo, ouvindo música, banhando as crianças [..,]”. Tivemos que rapidamente aprender uma nova forma de caminhar e aos poucos estamos percebendo que existem outras formas de fazer as coisas.


O isolamento social fechou as portas das casas, mas não nos isolou. De uma forma estranha, ele promoveu algumas interações sociais que antes pareciam impossíveis.  Agora estamos fazendo exercícios com os personais treiners dos famosos e indo a shows que antes não teríamos condições de bancar, nem mesmo o ingresso da meia entrada. Zona Sul e Zona Norte frequentam a mesma balada, basta entrar na live daquele DJ famoso, colocar o fone de ouvido e rebolar dentro de casa. 


Por outro lado, o COVID-19 escancarou outra coisa: poderíamos ser uma sociedade mais igual, mas optamos por outro caminho. Nossa sociedade é organizada de uma forma tão insustentável que um vírus foi capaz de nos derrubar. Não nos derrubou só pela ausência de imunidade no nosso organismo, mas também por nosso egoísmo e falta de empatia. 


Vamos pegar o Sistema Público de Saúde, uma das grandes conquistas da sociedade brasileira, como exemplo. Antes do vírus, apesar de encontrarmos no SUS profissionais extremamente capacitados e dedicados, nosso sistema público de saúde já era insuficiente, caótico e desconectado dos avanços tecnológicos que facilitariam sua gestão e o atendimento ao público.  


A verdade é que os ricos e poderosos nunca deram prioridade para a adequada implementação e atualização do sistema. Apesar de o tema sempre surgir em época de eleição, dominando as propagandas eleitorais. Por outro lado, o SUS sempre foi a pauta das rodas de conversa da classe pobre do nosso país. Essas pessoas que se reúnem na calçada, em frente de suas casas, para compartilhar os perrengues e descasos nas enormes filas de espera, da ausência de infraestrutura e da dificuldade para a marcação de consultas. 


Então, justamente quando a classe média e os ricos achavam que estavam seguros com seus planos de saúde, marcando consultas por aplicativo e com hospitais equipados, o COVID-19 veio e mostrou que não adiantava nada o patrão ter um hospital com leitos e respiradores se os empregados estiverem morrendo no sistema público de saúde ou se tudo tiver que parar para esse sistema não colapsar. Se tivéssemos, como sociedade, enxergado que o problema do sistema público de saúde não é um problema só “dos pobres”, se ele tivesse dominado nossas rodas de conversas, preocupações, ações e prioridades, hoje, com certeza estaríamos mais preparados. Mas aparentemente a empatia e humanidade não eram motivos suficientes para isso. 


“Mas nenhum lugar no mundo estava preparado”, alguns podem dizer. O fato é que o COVID-19 desencadeou doações bilionárias. Com a “doação” de empresas, milionários e dinheiro público, hospitais de campanha foram erguidos da noite para o dia. Ou seja, já poderíamos ter um sistema mais digno, mas não queríamos, afinal a ausência de um sistema público que funcione “não nos afetava”. No mínimo, já poderíamos ter um sistema de acompanhamento e monitoramento mais integrado e moderno funcionando. Esses dias o Ministério da Saúde anunciou que “Postos de saúde do SUS terão atendimento virtual”, que ótimo, deram um F5 no SUS!  


A pandemia fez com que milhares de pessoas perdessem seus empregos. Em um país de pobreza extrema como Brasil, onde ¼ da população vive abaixo da linha da pobreza, a paralização, essencial para conter a propagação do vírus, provoca consequências avassaladoras. Quem sofre primeiro? Os mais pobres, sem reservas financeiras ou auxílios. As pessoas em situação de vulnerabilidade (que sempre existiram) tomaram conta das matérias jornalísticas e o COVID-19, cotidianamente, passou a escancarar o abismo social que sempre existiu em nosso país e agora se intensificou. 


Para amenizar o problema e “socorrer a economia”, o governo aprovou um auxílio emergencial para pessoas de baixa renda, desenterrando um debate que por anos ficou esquecido no Congresso Nacional, o programa de renda mínima, que objetivava justamente diminuir esse abismo social. O problema? Para regularizar o cadastro no sistema, milhares de pessoas precisaram se amontoar em filas de atendimento presencial, prato cheio para o COVID-19. O vírus, mais uma vez, escancarou nosso atraso, o sistema nacional de registro/cadastro individual do cidadão precisa ser modernizado com urgência, precisa funcionar e ser acessível.  


A sociedade civil também mostrou seu espírito solidário, que já era visível em muitos lugares, e se multiplicou exponencialmente. As redes sociais e plataformas digitais viralizaram as Lives e com elas estão arrecadando toneladas e toneladas de alimentos: “A empresa tal doou alimentos para alimentar 300 famílias por 2 meses”, comemoravam alguns cantores famosos durante a transmissão ao vivo para milhões de pessoas. O número de toneladas de alimentos doados virou estratégia de marketing para alguns. O Coronavírus talvez tenha facilitado a disseminação e a importância da prática do consumo consciente e as empresas estão percebendo isso. Poderiam ter despertado para sua função social antes e promovido o consumo consciente de uma forma menos traumática? Com toda certeza, sim, muitas já faziam isso, mas para a maioria esmagadora, ser socialmente responsável não era economicamente interessante. 


O desiquilíbrio do nosso sistema educacional também veio à tona com essa pandemia. Eu sou professora na rede particular de ensino e, durante esse período de isolamento, estou dando aulas por vídeoconferência. Tenho colegas, igualmente professores, que não tinham um computador para fazer o mesmo. Tenho alunos que não possuem internet em casa para acompanhar as aulas ao vivo. Na educação pública, várias secretarias de educação até agiram rapidamente, gravaram aulas, continuaram com o conteúdo. Mas e os alunos? Teleaulas para alunos sem televisão? Aulas em aplicativos de vídeoconferência para alunos sem internet, celular ou computador? Estudar com fome e sem merenda? A desigualdade social, mais uma vez, foi a pedra no caminho.


Bom, no final das contas, não podemos ficar iludidos, nem todos têm acesso aos equipamentos e tecnologias para conseguir acompanhar as lives de shows incríveis, malhar pelo Instagram junto com seus artistas favoritos, frequentar baladas on-lines com DJ’s internacionais e receber atendimento médico a distância por vídeo. Mas poderiam!  E isso não custaria muito. Na verdade, custaria menos do que está nos custando agora.  O COVID-19 deixou claro que o acesso à tecnologia e à internet precisa ser tratado como direito fundamental e é essencial na promoção de igualdade de oportunidades.


Apesar de ser a melhor forma de nos proteger, o isolamento social não está sendo fácil, enfrentar essa pandemia muito menos. Famílias sofrem com a retração econômica e com a dor ao perder um ente querido para essa nova doença. A tristeza por vezes nos invade, a convivência no confinamento pode ficar difícil. A tecnologia tem ajudado? Sim, muito, mas poderia estar ajudando muito mais se estivesse mais bem distribuída! Precisamos, de alguma forma, despertar a consciência nessa crise para construirmos, POR NOSSA PRÓPRIA VONTADE, uma sociedade com mais igualdade de oportunidades e menos “distanciamentos sociais”. 

Notas:

1- https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46773-postos-de-saude-do-sus-terao-consulta-virtual

2-  Projeto arduamente defendido por Eduardo Suplicy que em 2004 até chegou a aprovar a Lei 10.835/04, de sua autoria, que estabelecia uma Renda Básica de Cidadania suficiente para atender as necessidades vitais para todos os residentes no Brasil.


Moara Silva é Mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF); Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Constitucionalismo, Direito do Trabalho e Processo”, do Mestrado em Direito do UDF; Membro do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CONSEPE – do UDF; Especialista em Docência Universitária; Professora do UniCeub, em Brasília/DF; Sócia e advogada da Lopes e Ormay Jr. Conselheira da OAB/DF


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