A retratação da mulher em quatro telas de Emiliano Di Cavalcanti

Emiliano Augusto Cavalcanti de Paula Albuquerque e Melo, “o mais brasileiro dos pintores modernos” — mais conhecido como Di Cavalcanti, nasceu em 6 de setembro de 1897, no Rio de Janeiro, e faleceu na mesma cidade em 1976. Durante sua vida produziu cerca de 5.400 trabalhos, entre pinturas e desenhos. 

Aos 20 anos, Emiliano decide morar em São Paulo, onde mais tarde descreveu essa mudança em suas memórias apenas com a simples frase: “São Paulo me seduzia”. 

Na mesma São Paulo, 100 anos depois, tive oportunidade de ver Di Calvancanti de perto, em setembro de 2017, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, fez uma linda e histórica retrospectiva em homenagem aos 120 anos do artista, com quadros esplêndidos e pouquíssimo conhecidos – por exemplo, a obra Samba de 1927, não era exposta desde 1928. 

O privilégio de ver de perto mais de 200 obras, ao longo de seis décadas de produção desse artista tão íconico brasileiro é indiscritivel. 

Di retratou a vida boêmia, festas de rua, trabalhadores, os subúrbios cariocas tomados por personagens da noite – geralmente homens na procura de diversão e da companhia de mulheres e prostitutas. O retrato – como um todo – da realidade brasileira de uma maneira muito singular, eclética, irregular e sensível.

Di Cavalcanti desenvolveria um fazer artístico totalmente singular, em comparação aos outros modernistas, é considerado como imaturo até seu retorno de Paris em 1925, período que amadureceu profissionalmente e quando ele se debruçaria sobre a figura da “mulata” como metáfora da brasilidade. A partir desse momento é possível perceber o uso intensivo da cor e o povo como protagonista. Em certo momento afirmou: “A mulata, para mim, é um símbolo do Brasil. Ela não é preta nem branca. Nem rica nem pobre. Gosta de música, gosta do futebol, como nosso povo.”

Conhecido como o “pintor das mulatas”, Di Cavalcanti retratou a mulher mestiça em praticamente toda a sua carreira. Por vezes, é considerado como um pintor sexista e racista, por suas representações.

Vale ressaltar que “Mulato” é uma velha expressão europeia indicativa do cruzamento do Branco com o Negro. A expressão está ligada ao hibridismo racial de forma pejorativa, visto que a palavra deriva do latim mulus, mula (mu e mula), quadrúpede que provém do cruzamento do cavalo com a burra, ou do burro com a égua (RAMOS, 2004).

No cátalogo da exposição, José Augusto Ribeiro em seu texto “Um Brasil moderno e popular” ressalta que “(…) é preciso de antemão considerar o risco de anacronismos em avaliações como essas, quando a análise do passado é feita com critérios do presente”.

Pensando nessas questões gostaria de analisar e descrever quatro obras (duas delas presentes na exposição de 2017, na Pinacoteca de São Paulo) em que as chamadas “mulatas” são retratadas, levando em conta o conceito de “brasilidade” do pintor, são elas – Samba (1925), Mangue (1929), A mulher e o Caminhão (1932) e Cinco Moças de Guaratinguetá (1930). 

Samba (1925)

Uma das pinturas representativas deste período característico da produção de Di foi Samba (1925), uma representação de um grupo de pessoas reunidas pela música.

Samba, 1925, Óleo sobre tela – 177 x 154 cm, Coleção Jean e Geneviève Boghici, Rio de Janeiro, RJ.

Uma cena ao ar livre composta por um rapaz dançando alegremente, outro melancólico, um terceiro tocando um cavaquinho, enquanto o do canto esquerdo inferior da tela olha fixamente com adoração a beleza e sensualidade do corpo curvilíneo da figura central do quadro: “a mulata”. 

Personagem preferido de Di Cavalcanti, ela dança e nem se importa com a alça que cai, deixando seu o seio esquerdo à mostra. Atrás dela, outra mulher dança, não usa blusa e também está com um dos seios à mostra e com o outro coberto pela mulher a sua frente, que igualmente não dá importância a essa exposição do corpo, o olhar de ambas se fixo no observador.

Claramente é possível identificar símbolos e estereótipos da cultura nacional idealizada pela alegria do samba e pela beleza de seu povo mestiço. A representação de membros deformados remete a tradição na representação de negros com feições grosseiras e corpos robustos. As mulheres parecem estar disputando poder, na tentativa de controlar o espectador, além de simplesmente aceitar e de certa forma, gostar do olhar dos que estão a sua volta.

O último proprietário da tela, Jean Boghici, conta que originalmente as mulheres foram retratadas totalmente nuas, mas devido ao estarrecimento que a imagem causou, visto que o quadro possui praticamente tamanho natural, Di resolveu cobri-las parcialmente.

Em 2012 o quadro — avaliado em 50 milhões na época e considerado a mais perfeita representação da cultura negra realizada no modernismo brasileiro — foi destruído em um incêndio. Do quadro só restou os pés dos personagens, cerca de 30% da tela.

Mulata (1929)

A mulher mulata também é retratada em ambientes urbanos, como é o caso da tela Mangue (1929), com três personagens com rostos bem definidos no centro que olham diretamente ao espectador, contrastando com as outras pessoas ao fundo, que estão em movimento.

Mangue, 1929, aquarela – 37 x 29,5 cm, Coleção Marco Antonio Greco, São Paulo, SP

Uma mulher nua abraçada com um homem vestindo um terno, um casal de costas e um homem segurando uma garrafa. Assim estão dispostas as outras personagens da tela, que por suas retratações de comportamento, podemos entender que se trata de um local quente, devido ao leque na mão das duas mulheres centrais e que as pessoas se encontram à vontade e com naturalidade, já que as personagens estão nuas, seminuas ou vestidas de maneira insinuante.

O Mangue, ambiente retratado nesta tela, foi a grande zona da prostituição no Rio de Janeiro e, conforme relatou Manuel Bandeira “era uma cidade dentro da cidade, com muita luz, muito movimento, muita alegria.”.

Di Cavalcanti foi frequentador do Mangue não só como artista e observador, mas também frequentou para se divertir. Em suas representações dos bordéis, sua arte flui como experiência vivenciada, é possível identificar uma enorme proximidade e, até mesmo, certa promiscuidade com os assuntos tratados..

As mulatas em Mangue (1929) são representadas com muita feminilidade e sensualidade, aliás, a tensão sexual é a característica mais presente na cena, que nos remete a uma sensação de movimento e agitação das personagens.

A mulher e o Caminhão (1932)

Sempre representadas com muita sensualidade e beleza, as “mulatas” de Di também foram retratadas em momentos de repouso e solidão, como é o caso da tela “A mulher e o Caminhão” (1932).


A mulher e o caminhão, 1932, óleo sobre madeira – 38 x 49 cm, Coleção Lucien Finkelstein, Rio de Janeiro, RJ

Em um momento de relaxamento, a mulher – uma mestiça de tom de pele claro – apoia a cabeça com um dos braços, sem preocupação com o que acontece fora do ambiente em que está, e no canto direito inferior vemos um observador debruçado na janela, que pode ser tanto uma mulher quanto um homem, mas levando em consideração a típica retratação feminina de Di e pela falta de adornamento da personagem, provavelmente se trata de um homem.

O que chama a atenção na cena é que mesmo estando sozinha e em momento de descanso, despreocupação e com a sua beleza natural (sem ornamentos), a mulher ainda é atraente aos olhos do observador.

Cinco moças de Guaratinguetá (1930)

Contrastando com a naturalidade da personagem da tela A mulher e o caminhão (1932), Emiliano realizou em um dos seus mais importantes trabalhos, Cinco moças de Guaratinguetá (1930), a representação da mulher ornamentada em um ambiente distinto da noite carioca.

Cinco Moças de Guaratinguetá (1930), Óleo sobre tela — 92 x 70 cm, Acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, S

Na tela podemos identificar cinco moças, uma delas está ao fundo debruçada sobre a janela com um braço apoiando seu rosto, como se observasse o que se passa na rua. Das quatro moças que estão no centro do quadro, três olham em direção do espectador, outra olha em direção das outras meninas e segura um guarda-chuva.

Podemos perceber o cuidado do pintor em retratar detalhes, estampas, a maquiagem do rosto, os chapéus e as cores presentes em todos os elementos do quadro. As personagens não são representadas envoltas de sensualidade, pelo contrário, estão vestidas de acordo com a moda da Época. 

Estas personagens são representadas dentro de espaços artificiais e construídos pelas relações de interesse entre as pessoas, lugares de ostentação e exibição de dinheiro e refinamento – ao contrário das cenas onde as mulatas parecem conservar a essência da beleza e autenticidade. 

Aracy Amaral, professora-titular de História da Arte pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, crítica e curadora de arte, escreveu no ensaio “As três décadas de Di Cavalcanti”, publicado pela primeira vez em 1985, diz: 

“Vista quase sempre como uma permanente extensão de seu afeto, a mulher em Di Cavalcanti, personagem principal, é a mulher criatura querida ou fatal, ou lambisgóia, ou ingênua, ou maternal em suas carnes, ou picante, ou prostituída, mas sempre fixada em retrato terno, ou envelhecida, porém faceira. É também a mulher do povo, anônima, comparecendo em sua imagem de simplicidade e modéstia. Assim como a mulata, que ostenta sempre a pose de modelo paciente, em sua plasticidade inigualável.” (AMARAL, p. 93, 2006)

No Ensaio “Desenhos de Di”, da década de 80, Aracy complementa: 

“Para Di Cavalcanti, a mulher não é mulher-objeto. É parte essencial de sua experiência sensorial, sexual, afetiva. É amorosa sua contemplação da ondulação das formas femininas. Mas e espevitadas, lambisgóias, roliças ou acolhedoras, amoráveis, desejáveis” (AMARAL, p. 96 e 97, 2006)

Primeiramente, é preciso levar em conta que especulações sobre os aspectos distintivos de uma “identidade brasileira” estão na raiz de parte significativa da inteligência que se desenvolve desde o século XIX. É nesse contexto, já no início do século XX, atribui-se à expressão “mulato” o sentido positivo que a mestiçagem adquiriu em explicações sobre a formação étnica do povo brasileiro como um elemento característico do país. Já o ponto pelo qual o trabalho de Di Cavalcanti é considerado “machista” ou “sexista” contém, é também em princípio, um componente que se pretendia elogioso à mulher: quando a elege símbolo do país e seu corpo é, enquanto tal, associado à paisagem de exuberância natural e à sensualidade que, ainda hoje, julga-se típica do brasileiro.

Variações desses raciocínios estão internalizadas em vários discursos e obras que se desenvolveram a partir daquele momento, por autores tão diversos quanto o arquiteto Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Vinicius de Moraes.

De toda forma, é impossível negar que Di Cavalcanti foi um dos responsáveis por levar a imagem da mulher negra para fora do Brasil, reforçando estereótipos racistas. O mesmo aconteceu, por exemplo, com obras de Tarsila Amaral, que exageravam detalhes etnográficos, ressaltando traços, como o nariz largo, as bocas grandes, mãos, pés e seios avantajados e cabeças pequenas, novamente resumindo o negro ao trabalho e tirando seu aspecto pensante.

Comparando as representações de mulheres negras de Di com as de Benedito José Tobias, (artista negro contemporâneo de Di Calvalcanti), podemos identificar muito mais sensibilidade ao retratar as pessoas a sua volta (Indico fortemente uma pesquisa acerca das obras desse Pintor brasileiro). 

Enfim, só podemos concluir que: 

O olhar não é o mesmo, entre colonizador e colonizado. Existe uma diferença crucial no discurso, quando ele é sobre VOCÊ. 


Caroline Carvalho é especialista em Gestão de Projetos Culturais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), USP, ama arte, literatura, estudos da cultura e correlatos. As vezes tira umas fotos.


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